Diplomacia e Relações Internacionais
Yo, El Supremo (pero desaparecido) - Editorial Estado sobre o presidente fantasma
A literatura latino-americana já produziu algumas obras primas no gênero realismo mágico, mas poucas peças igualam a situação atual da Venezuela, governada por um presidente que simplesmente desapareceu do mapa, do cenário, do mundo físico, mas que permanece presente no noticiário e na vontade dos militantes da causa.
Vamos ver até onde vai a novela, ou a farsa...
Paulo Roberto de Almeida
O presidente fantasmaEditorial
O Estado de S.Paulo, 17 de janeiro de 2013
Já se disse, mas é apropriado repetir: a situação criada com o autogolpe chavista, referendado por um Judiciário submisso ao regime, que prorrogou indefinidamente o mandato do caudilho venezuelano, que terminou no último dia 10, transpôs para o mundo dos fatos o realismo mágico que projetou a literatura latino-americana desde o lançamento, em 1967, de Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez. Em algum lugar na ilha de Cuba, o dirigente supremo de outro país também banhado pelo Mar do Caribe se recupera - ou não - da quarta cirurgia a que se submeteu ali para extirpar o câncer que o acometeu há um ano e meio em uma porção não revelada de sua anatomia pélvica. Hugo Chávez, o paciente, deixou Caracas em 8 de dezembro para se operar três dias depois. Ao se despedir, pediu aos venezuelanos que votassem no seu vice, Nicolás Maduro, "se se apresentar alguma circunstância inesperada que requeira novas eleições presidenciais".
Nos 40 dias que se seguiram, ele foi visto - e quem sabe ouvido - por muito poucos: além dos médicos, atendentes e familiares, apenas os hierarcas do chavismo e a cúpula castrista hão de ter tido esse peculiar privilégio. Ao mundo se informou, sucessivamente, que a cirurgia tinha sido bem-sucedida, que o enfermo teve uma hemorragia, depois uma infecção pulmonar, alegadamente superada, e problemas respiratórios dos quais estaria se recuperando. "Nosso comandante está subindo a montanha", rejubilou-se Maduro em seguida a mais um bate-volta entre Caracas e Havana. "Provas" disso seriam a minirreunião de gabinete que teria conduzido na terça-feira e o suposto ato de nomeação, no mesmo dia, do novo chanceler do país, o linha-dura Elías Jaua, seu vice até outubro passado, quando saiu para disputar (e perder) a eleição para o governo do Estado de Miranda. Na Venezuela, o vice-presidente no exercício da presidência, como é o caso de Maduro, tem apenas uma parte dos poderes do titular. Ele não pode, por exemplo, nomear e demitir ministros.
O substituto de Chávez fez o anúncio na Assembleia Nacional, sem exibir o documento da designação, com a imprescindível assinatura do Comandante. Devem se esperar novos capítulos dessa farsa que só acabará na improvável hipótese de sua alta médica, ou quando ele falecer - mais precisamente, quando os chavistas, em acordo com seus mentores cubanos, acharem oportuno dar a notícia. Em tese, o regime poderia esperar 180 dias a contar do início do mandato do qual o líder não tomou posse para declarar a sua "ausência absoluta", como prevê a Constituição (para presidentes efetivamente empossados), com a convocação de novas eleições. Mas a sobrevida do presidente fantasma, que promove reuniões de trabalho e nomeia ministros em circunstâncias igualmente fantasmagóricas, parece convir - por ora - ao aparato chavista. De outro modo não se explica por que, impedido o chefe de assumir, não se marcaram novas eleições no prazo constitucional de 30 dias. No país em transe, a oposição teria escassas chances contra Maduro, o herdeiro ungido.
Ungido, mas não necessariamente a salvo de rivalidades e conflitos de interesses nas entranhas do sistema. Por exemplo, entre nacionalistas próximos às Forças Armadas, como o presidente da Assembleia Nacional, Diosdado Cabello, e a ala "cubana" que detém amplo espaço no partido oficial, o PSUV. Num prognóstico otimista, a interinidade prolongada de Maduro criaria as condições para a afirmação de sua liderança - embora ele tenha de afirmar e reafirmar que o seu patrono é quem governa -, estabilizando o chavismo sem Chávez. Mas está para nascer a autocracia que não sofra fraturas, menos ou mais expostas, quando o autocrata se vai. A virtual certeza de que a Revolução Bolivariana seria legitimada pelo voto, na pessoa de Maduro, se a eleição fosse hoje, tem prazo incerto de validade. Os chavistas, se pudessem, aplicariam a fórmula cubana que permitiu a Raúl Castro suceder a Fidel mediante a formalidade de sua sagração pelo Parlamento de partido único. Devem estar se perguntando a que artes de realismo mágico poderiam recorrer para chegar ao mesmo resultado, exorcizando o "risco urna".
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Reflexões sobre a situação da VenezuelaOpinião - 20 de janeiro de 2013
Celso Lafer - O Estado de S.Paulo
O grave estado de saúde do presidente Hugo Chávez impossibilitou-o de tomar posse, no último dia 10, para o exercício de um terceiro mandato presidencial, para o qual havia sido eleito. Esse fato frustrou o cumprimento de uma posse expressamente prevista pela Constituição do país, elaborada na vigência do chavismo. Acabou levando a uma juridicamente discutível fórmula voltada para dar continuidade ao seu regime de mando. Essa fórmula, que teve o respaldo do Legislativo e do Judiciário, afastou a via constitucional contemplada para uma situação dessa natureza: a realização de nova eleição em 30 dias.
Na perspectiva das relações internacionais, a análise desta situação passa por uma avaliação sobre em que medida a fórmula acima mencionada, que conferiu poder a Nicolás Maduro, ungido como vice-presidente pelo presidente Chávez em dezembro, no exercício do seu anterior mandato, configura ou não uma ruptura de ordem democrática nos termos do Protocolo de Ushuaia de 1998, do Mercosul, com o qual a Venezuela está comprometida. Também cabe levar em conta a Carta Democrática Interamericana de 2001, à qual a Venezuela está ligada como Estado-membro da OEA, ainda mais que serviu de base para deslegitimar a tentativa de golpe de Estado contra o presidente Chávez em 2002.
A cláusula democrática consagrada nos dois textos citados tem como objetivo realçar a importância das afinidades que resultam da forma compartilhada de conceber a vida em sociedade, seja para o desenvolvimento dos processos de integração (no caso do Mercosul), seja para reconhecer que a democracia representativa é indispensável para a estabilidade, a paz e o desenvolvimento da região (no caso da OEA).
A cláusula democrática guarda relação com as características ora mais homogêneas, ora mais heterogêneas dos regimes políticos dos Estados que integram o sistema internacional. A distinção homogêneo/heterogêneo deve-se a Raymond Aron. Em Paz e Guerra entre as Nações realça que a conduta dos Estados não se circunscreve à mera afirmação de interesses nacionais e à luta pelas posições de poder no plano internacional. No plano externo é movida também pelas ideias e pelos valores que norteiam, no plano interno, os seus regimes políticos.
Na vigência dos regimes autoritário-militares na América Latina, as afinidades provenientes da concepção política dos governantes daquela época levaram ao conceito das fronteiras ideológicas. As transições democráticas na região trouxeram uma contestação a essa visão autoritária do papel das fronteiras. A cláusula democrática foi fruto dessa realidade política. Parte do potencial de convergência cooperativa no campo econômico e estratégico, proveniente da proximidade no campo dos valores, tutelado pela cláusula democrática. Com efeito, no campo dos valores, a democracia, porque postula no plano interno o reconhecimento do Outro, favorece, no plano internacional, a aceitação das normas jurídicas, a moderação das pretensões e a limitação da violência nas relações entre os Estados que a praticam.
Bobbio ilustra as consequências para a vida internacional de um regime antidemocrático na sua análise do fascismo. Aponta que o fascismo se contrapôs muito mais à democracia do que ao socialismo e ao marxismo; realça que a violência era a sua ideologia e, por isso, a exaltação da guerra foi uma de suas características mais constantes; anota o significado da afirmação do primado da ação sobre o pensamento, que substitui o "penso, logo existo" pelo "agitamos, logo somos", e assinala que Mussolini via na democracia representativa e no seu antibelicismo a mediocridade de uma vida cotidiana cerceadora de uma ação voltada para a criação de uma "nova ordem".
Na vida de um sistema internacional há modalidades e gradações diversas de homogeneidade e heterogeneidade, variáveis em função das estruturas sociais e da dinâmica dos regimes políticos dos Estados. Assim, por exemplo, no momento atual, o componente democrático do "governo das leis" é muito mais nítido no Brasil e no Uruguai do que na Argentina. São as gradações e os matizes que tornam complexa a avaliação da condição democrática de um país.
Nessa avaliação, no caso específico da Venezuela, cabe examinar o tema da degeneração do poder democrático, seja por falta de título para o seu exercício, seja como resultado do abuso no seu exercício. O título para o exercício do poder do vice-presidente Nicolás Maduro é juridicamente discutível, mas foi respaldado pelo Legislativo, pelo Judiciário e pelo Executivo do país. Daí a importância de se examinar se provém de uma degeneração do poder democrático que ocorre quando se configuram significativos desrespeitos aos direitos humanos, à independência e à separação dos Poderes, à liberdade de expressão e de imprensa e à vigência plena do Estado de Direito.
O regime do presidente Chávez vem se caracterizando pelo crescente fomento da hiperpersonalização da política, que visa ao fortalecimento do Executivo e ao enfraquecimento dos vínculos e controles que caracterizam a arquitetura constitucional democrática em matéria de aquisição e exercício do poder. É representativo do primado da ação do governo de um homem que, lastreado numa autocracia eletiva, promoveu a subordinação do Legislativo e do Judiciário para permitir o culto à política como espaço para o pleno desenvolvimento da vontade da potência.
É por obra da natureza monocrática do regime político da Venezuela que a fórmula encontrada para manter, no momento, ainda que indiretamente, o mando do presidente Chávez se fez per leges, ou seja, por meio da lei, mas não sob o império do governo das leis. É por isso que ela é democraticamente discutível e juridicamente frágil. A evolução da conjuntura dirá se a democracia vai ou não enfraquecer-se ainda mais na Venezuela e se vai ou não contribuir para aumentar a heterogeneidade não democrática da região.
PROFESSOR EMÉRITO DO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
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