Diplomacia e Relações Internacionais
Reflexões ao leu, 2: sobre as revoltas nos países islamicos
De vez em quando -- ou bem mais "quando" do que vez -- sou acometido de "escrevinhação" aguda, uma doença compulsiva que me leva a escrever o que me "salta" como reflexão ao cérebro -- só tenho um, por incrível que pareça -- ao ler sobre episódios diversos de nossa atualidade tão movimentada, como são essas revoltas nos países árabes e islâmicos.
Bem, essas reflexões que saltam não me pegam desprevenido: tenho sempre um ou dois moleskines no bolso da camisa ou do paletó, e duas ou três esferográficas sempre prontas a soltar sua tinta, e lá vai mais um pouco de papel sujo com algumas ideias. Quando não é, claro, diretamente no computador, aliás muito frequentemente, pois tampouco saio de casa sem ele, pelo menos para o trabalho e a faculdade (os cachorros ainda não me deixam escrever em paz, quando estou passeando com eles na rua, mas consigo, pelo menos, ler e responder e-mails do meu iPhone...).
Pois é assim que acabo perpetrando essas reflexões ao léu, a primeira das quais foi feita logo no começo do ano, e divulgada aqui mesmo neste blog, neste link:
Reflexões ao léu, 1: Fukuyama, marxista, detestado pelos “marxistas”Paulo Roberto de Almeida (Uberlândia, 6 de janeiro de 2011)
Pois eu gostei da fórmula, textos curtos, refletindo a atualidade, ou as leituras do momento, mesmo históricas e de muitos anos atrás...
Aqui segue, pois, o segundo da série.
Paulo Roberto de Almeida
Reflexões ao léu, 2: sobre as revoltas nos países islâmicosPaulo Roberto de Almeida
Existem duas situações que incitam os povos à revolta: fome e opressão. Foi por causa da fome que os camponeses franceses do
ancien Régime começaram a reclamar de sua situação sob a monarquia absolutista francesa. Mas eles não tinham condições, sozinhos, de mudar essa situação; precisaram da burguesia e dos intelectuais, que estavam em busca de representação e autonomia, para que se chegasse à revolução. Foi também por causa da fome, em grande medida provocada pela guerra, que os camponeses e operários russos se levantaram contra o czarismo; mas eles precisaram de líderes revolucionários de classe média, que na verdade lutavam contra a opressão do regime, para derrubar o czar e colocar em seu lugar um governo republicano (que, aliás, continuou a guerra e não deu pão aos pobres).
“Pão e liberdade” foi o slogan escolhido pelos bolcheviques para conquistar o poder, por meio de um golpe que prometia acabar com a guerra e trazer comida para os famélicos russos. Eles deram então início a uma das mais pavorosas experiências totalitárias do século 20 – nisso secundados pelo maoísmo delirante – sem nunca ter conseguido propiciar benefícios materiais à população (no máximo pão seco) e condenando-a a viver sob um dos regimes mais opressivos da História. No final, um pouco pela carência de bens, mas muito mais pela falta de liberdade, os povos se revoltaram novamente, derrubando os muros e derrocando os regimes comunistas.
Nos países árabes e islâmicos, atualmente, as revoltas são comandadas tanto pela situação de marginalidade socioeconômica de grande parte da juventude provinda de camadas não privilegiadas, quanto por demandas de liberdade por parte da juventude universitária conectada. O fator religioso pode ter tido um papel importante na guerra civil britânica do século 17 e, parcialmente, na revolução iraniana que derrubou o xá da Pérsia, em 1979; mas não teve nenhum na atual revolução dos países islâmicos. Trata-se da mesma demanda por “pão e liberdade”, em versão atualizada, que moveu as massas francesas em 1789 e as russas em 1917.
Mas aí terminam as semelhanças com essas ilustres predecessoras. Começam talvez aqui as comparações com o ciclo que se observou em 1989, nos países socialistas. Não são propriamente líderes políticos ou partidos revolucionários que estão à frente dessas revoltas, mas mais exatamente o povo comum; se de um lado estavam aqueles que faziam a revolução com os pés e as picaretas, emigrando para o Ocidente e depois derrubando o muro, do outro estavam os jovens com pedras, nas ruas e praças de vários países árabes e muçulmanos.
As revoltas na Tunísia e no Egito podem ser os equivalentes funcionais – para os que gostam de analogias históricas – da derrubada dos muros e dos regimes nos países comunistas do Leste Europeu, mas as semelhanças param por aí. A euforia da queda de ditaduras opressivas, que, aliás, condenaram seus países à estagnação material – um pouco como nos antigos países do socialismo real – podem até gerar expectativas otimistas quanto à conformação de regimes democráticos nesses países, um pouco como ocorreu nos países da
MittelEuropa (da Polônia à Hungria, apenas, passando pela República Tcheca e Eslováquia, e também a Eslovênia), mas não na Rússia e nas ex-satrapias soviéticas (que continuam autoritárias). Não creio, porém, que a mesma trajetória liberal venha a ser implantada nos países que enfrentam agora a “revolta das ruas”, por razões que exponho a seguir.
Os países da
MittelEuropa que hoje fazem parte do arco democrático europeu e integram a União Europeia possuíam, antes da sua conversão forçada ao comunismo (pela força dos tanques soviéticos), sociedades civis vibrantes e culturas políticas feitas de organização política e de sindicatos atuantes. Eram também capitalistas,
cum grano salis. O comunismo foi um intervalo de duas gerações, mas nunca apagou da lembrança das pessoas a liberdade e o capitalismo que tinham sido perdidos na esteira do Exército Vermelho. Muito diferente é a situação dos países árabes ou islâmicos que hoje conhecem revoltas de suas incipientes sociedades civis. Não se pode dizer que qualquer um deles tenha conhecido, antes da dominação otomana ou imperialista europeia, uma cultura democrática apoiada numa sociedade autônoma e independente em relação a seus respectivos Estados autocráticos.
A forma especificamente ocidental de fazer política – que está na base da teoria e das práticas políticas liberais, baseadas na representação democrática, no respeito aos direitos humanos e às liberdades individuais – nunca existiu, propriamente, nos países que hoje passam pela “revolta das ruas”: não existem partidos organizados no sentido programático da expressão; a Irmandade Muçulmana, presente em vários desses países, não é um substituto ideal à política partidária conducente a uma representação responsável, como concebido nos modelos de governança do Ocidente moderno. Em outras palavras, as sociedades árabes, e por extensão muçulmanas (provavelmente mais aquelas do que estas), não possuem sociedades civis, no entendimento weberiano, ou florentino, do termo. Não se pode, assim, esperar, que esses países venham a se tornar sociedades abertas e regimes políticos democráticos na plena acepção desses conceitos.
Isto não quer dizer que esses países – alguns mais do que outros, o Egito e a Tunísia mais do que a Líbia ou o Iêmen, por exemplo – não possam se converter, oportunamente, em sociedades democráticas, ou pelo menos em regimes formalmente democráticos, ainda que isto tome certo tempo, variável segundo fatores contingentes que não é possível prever ou antecipar cronologicamente. Esse processo será lento, doloroso, conhecerá retrocessos e até algumas tragédias humanas, previsivelmente, mas o sentido geral, em todas essas sociedades, será sempre na conquista de “pão e liberdade”.
Os jovens desempregados e os jovens universitários que enfrentaram as milícias repressivas nas ruas dos países islâmicos estavam, como seus predecessores franceses, russos, iranianos e os cidadãos do Leste Europeu, clamando seja por pão, seja por liberdade, nem sempre por ambos ao mesmo tempo, e geralmente não numa ordem pré-determinada. Eles provavelmente terão pão, meio amarfanhado, é verdade, não o de melhor qualidade, mas o que for possível fornecer em regimes semi-capitalistas em transição para um capitalismo menos patrimonialista, que será o que esses países conseguirão obter num futuro de médio prazo. Quanto à democracia política, ou o respeito pelos direitos humanos e as liberdades individuais, isso terá de esperar, pois a construção de regimes verdadeiramente democráticos vai demorar certo tempo, pela própria lógica das construções societais, sempre lentas a mudar, a assumir novas formas, no longo desenvolvimento estrutural do tempo braudeliano.
Não creio que eu esteja sendo muito pessimista. Apenas realista, usando para isso um exemplo bem conhecido aqui na região: a América Latina. Os países latino-americanos já não conhecem as ditaduras do passado, nem as formas mais anacrônicas de oligarquias latifundistas, explorando a ignorância do povo rural, embora isso também exista, mas é residual. O que realmente distingue a América Latina é a pobreza mais que residual e a má qualidade de sua democracia, com uma corrupção pujante e uma classe política cada vez mais autista, ou autocentrada. A governança é errática, por vezes melhora, em outras se deteriora rapidamente. A despeito de progressos reais em várias áreas, o cenário social se deteriora em outras: na educação, no tráfico de drogas, na miséria moral de certos “representantes” do povo. Talvez a América Latina seja um bom exemplo do que aguarda esses países árabes que estão saindo de uma ditadura miserável para uma democracia hesitante.
Certamente devemos saudar as “revoluções” democráticas nesses países, mas devemos guardar a cabeça fria: eles estão recém chegando à realidade, a uma realidade de tipo latino-americano, digamos assim. Com todos os nossos defeitos, de latino-americanos difíceis de chegar à democracia e ao desenvolvimento, tudo parece melhor do que antes, e de fato é melhor do que nada. Pão e liberdade, OK, mas a embalagem de entrega não passaria por algum controle de qualidade dos mais rigorosos. Não se pode ser perfeccionista demais. Não se pode pedir muito a este mundo imperfeito, sobretudo em certas latitudes. Ainda temos duas ou três gerações de aperfeiçoamento democrático e de progresso econômico. Vai demorar, mas vai chegar.
Portanto: viva a primavera árabe, mas bem-vindos à realidade...
Paulo Roberto de Almeida
(Brasília, 20/02/2011)
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