Governos e empresas vão travar, a partir de segunda-feira, uma verdadeira guerra em relação ao futuro da internet. Pela primeira vez em 25 anos, a comunidade internacional se reunirá, em Dubai, para definir as regras que irão moldar as telecomunicações nas próximas décadas.
Mas propostas de China, Rússia, países árabes e de outros regimes para controlar o conteúdo da internet criam mal-estar e colocam em risco qualquer acordo. Outro ponto crítico é a questão de quem vai bancar a expansão da internet no mundo nos próximos cinco anos, uma conta estimada em US$ 800 bilhões. Empresas de telecomunicações e as gigantes da web travam uma disputa feroz nos bastidores.
O Brasil, apesar de ir à conferência mundial com uma posição contrária a qualquer censura na rede, chegará sem ter conseguido votar o Marco Civil da Internet no Congresso, um assunto que vem sendo discutido há tempos (ver ao lado).
Na última vez que os governos sentaram para definir regras globais, em 1988, a internet sequer existia. Agora, quando voltarem a se reunir, constatarão que o mundo passou por uma de suas maiores revoluções tecnológicas de todos os tempos, e que está exigindo novas regras.
Limites
O rascunho da declaração final, obtido pelo Estado, revela a inclusão de uma proposta de limitar o acesso à internet e outras formas de comunicação. Governos poderiam agir todas as vezes que o fluxo de informação na internet ou em outras formas de comunicação represente uma “interferência em assuntos domésticos” de um país, que a soberania de um Estado esteja ameaçada pela informação, por motivos de “segurança nacional”, para proteger a “integridade territorial” ou simplesmente caso informações de “natureza sensível forem divulgadas”.
Ontem [quinta-feira, 29/11], o regime de Bashar Al Assad, na Síria, simplesmente desligou toda a rede de computadores e telefonia do país, enquanto realizava a maior ofensiva contra rebeldes em Damasco.
Se aprovado, o texto representaria a abertura de um novo capítulo para a internet. Para o gigante Google, a conferência representa uma “séria ameaça”. Segundo a empresa, a reunião ameaça comprometer de forma profunda o futuro da liberdade de informação na internet se a posição de regimes ditatoriais prevalecer.
Não por acaso, a empresa que controla o YouTube vem fazendo um vasto lobby pelo mundo, em busca de apoio por parte de governos para que vetem trechos na resolução final que acabe limitando o fluxo de informação na internet. “Apenas governos tem voz na decisão final e entre esses governos estão aqueles que não apoiam uma internet aberta e livre”, declarou a empresa em um comunicado. Segundo o Google, governos já fizeram 21 mil solicitações à empresa para que fornecesse dados sobre usuários, num sinal do interesse das autoridades em controlar informações.
Mas, às vésperas do encontro, o mundo político está dividido. “Não há como pensar em deixar a internet sem um controle”, declarou o embaixador da China na ONU, Liu Zheming. Países árabes também têm apoiado o texto, assim como regimes na África, Rússia e alguns regimes mais fechados na Ásia.
Para alguns desses países, o lobby feito pela Google não passa de uma campanha de relações públicas para tentar vender uma imagem de ser uma empresa interessada na liberdade dos internautas, quando o motivo real seriam os lucros que poderiam deixar de ter.
O Brasil já deixou claro que irá se opor a essa linguagem, aproximando-se mais da posição de Estados Unidos e Europa que dos demais emergentes. Para o governo brasileiro, não existe qualquer chance de que se defenda limitações ao fluxo de informação na internet. A delegação brasileira será composta por ministros, indicando a importância que o governo dá ao assunto.
Dispostos a impedir que essa declaração seja aprovada, a delegação americana chegará em Dubai com 125 integrantes. A posição dos Estados Unidos é de defender o status quo na gerência da internet, principalmente diante do fato de que, hoje, as empresas que mais ganham com a rede são americanas.
Oficialmente, porém, a delegação americana apenas alegará que uma aliança de países está sendo formada para criar argumentos para aumentar a censura na internet, sob a justificativa de lutar contra spam, pedofilia ou outros crimes.
Conta
Mas a guerra não se limita à questão do conteúdo. Um dos pontos críticos da reunião é a conta da internet. Operadoras querem que empresas da web, como Google ou Microsoft, passem a pagar pelo volume de dados enviados e que exigem investimentos cada vez maiores por parte das telefônicas.
Até 2016, a UIT estima que o volume de dados na internet vai quadruplicar. No Brasil, ele será aumentado em oito vezes. As estimativas apontam que, para dar conta disso, o mundo terá de investir US$ 800 bilhões em cinco anos. Caso contrário, a rede irá literalmente cair. Hoje, apenas as empresas de telecomunicações pagam para ampliar a infraestrutura. Mas agora querem compartilhar a conta com quem manda os dados. A própria UIT estima que, se o modelo não mudar, haverá um freio na internet.
Outra questão é a garantia da neutralidade na rede. Ou seja, todos são cobrados da mesma forma para ter acesso à internet. As empresas de telefonia querem começar a modificar os pacotes oferecidos aos clientes, cobrando mais de quem usa mais. Para isso, terão de derrotar um projeto que pede que a neutralidade na rede se estabeleça como princípio.
No Brasil, o projeto de lei que tentará regular o assunto defende que o tráfego de dados na rede não sofra qualquer diferenciação, justamente respeitando o princípio da neutralidade. Mas, também no Brasil, as operadoras pressionam para que essa posição mude.
Sem a aprovação do Marco Civil antes do evento, porém, muitos temem que o Brasil seja obrigado a adotar uma postura mais reservada. O ministro Paulo Bernardo chefiará a delegação.
Muitos temem que a declaração ainda poderia transformar a UIT, órgão ligado à ONU e criado em 1865 para regular os telégrafos no mundo, em uma espécie de reguladora da internet. As reações contra essa ideia têm sido das mais fortes. Com ampla maioria, o Parlamento Europeu aprovou uma resolução condenando as manobras da UIT e dos regimes ditatoriais que visam estabelecer novas regras para a web.
“A UIT não é o órgão competente para impor a autoridade regulatória sobre a governança da internet”, declarou o Parlamento. Segundo a resolução dos europeus, se aprovada, a declaração de Dubai poderia “afetar gravemente o desenvolvimento e acesso de serviços online e a economia digital”.
Da parte da UIT, a entidade rejeita a acusação de que esteja negociando o texto a portas fechadas e garante que não quer passar a controlar a internet. “Todos os 193 países estão participando das negociações”, declarou. Hamadoun Touré, secretário-geral da UIT, classificou o temor da comunidade internacional em relação a seus supostos objetivos como “ridículo”.
[Jamil Chade, correspondente do Estado de S.Paulo em Genebra]