Desde a República, ciclos de crescimento do Brasil foram interrompidos por crises no balanço de pagamentos. País dependente da exportação de poucas commodities — o café foi soberano por cerca de um século —, quedas súbitas nos seus preços resultavam em renegociação ou moratória da dívida externa. Depois da II Guerra, buscou-se reduzir tal vulnerabilidade mediante estratégia de industrialização por substituição de importações.
Nosso calcanhar de aquiles era o baixo ou nenhum acesso aos mercados internacionais de crédito e de capitais. Salvo um pequeno interregno no princípio do século XX — quando obtivemos empréstimos de bancos ingleses —, o financiamento do déficit do balanço de pagamentos provinha de países ricos, de instituições multilaterais e de linhas de comércio exterior. Quase tudo sumia nas crises.
A globalização financeira dos anos 1980 e a reciclagem competitiva dos petrodólares (lucros que os produtores de petróleo depositavam nos bancos) deram a impressão de que as crises externas tinham ficado para trás. O Brasil e outros países em desenvolvimento passaram a captar facilmente recursos no exterior. “Empréstimos sindicalizados” (de que participavam vários bancos) eram concedidos com rapidez e poucas exigências. Pequenos bancos europeus podiam apoiar um projeto nuclear, uma grande rodovia ou o Programa do Álcool no Brasil. O sistema ruiu com a moratória mexicana de 1982. Os devedores quebraram. A nova crise da divida externa durou mais de dez anos.
Uma outra conjunção favorável aconteceria a partir de 2003, propiciada pelo excepcional crescimento da economia mundial e pela emergência da China como forte demandante de commodities agrícolas e minerais. No Brasil, adicionalmente, amadureceram as reformas dos anos 1990 — o Plano Real e as privatizações —, que requerem tempo para produzir frutos. O país ganhava duplamente com o boom das commodities: era competitivo na área agrícola, resultado das pesquisas da Embrapa, e no minério de ferro, graças aos ganhos de eficiência derivados da privatização da Vale.
Naquele ano, o PT assumiu o governo. Os petistas haviam recebido, então, dois presentes dos céus: (1) os ganhos de produtividade advindos de reformas da era FHC somados à ociosidade de mão de obra que poderia ser incorporada ao processo produtivo, aumentando o potencial de crescimento; (2) uma bonança externa, verdadeiro maná vindo da China, equivalente a novos ganhos de produtividade. Por causa disso, o consumo e os investimentos se expandiram a taxas maiores que as do PIB. O crescimento da economia elevava a receita tributária. Havia mais dinheiro para programas sociais. Lula beneficiou-se dos dois presentes e convenceu os incautos de que recebera uma “herança maldita”.
Governos sérios buscam amplificar os manás que recebem e assim ampliam o bem-estar da sociedade. Lula fez isso nos seus dois primeiros anos no governo. Com Antonio Palocci no Ministério da Fazenda, promoveu reformas que ampliaram o acesso ao crédito e à casa própria e também melhoraram o ambiente de negócios.
O PT vendeu a história de que teria sido a origem de tudo, ou seja, “o jeito petista de governar”. Não era verdade, mas funcionou. José Dirceu dizia que “o PT não rouba nem deixa roubar”. Hoje se sabe que não era assim.
A situação começou a mudar em 2006, ano em que Palocci foi substituído por Guido Mantega no Ministério da Fazenda. Velhas ideias voltaram: intervenções de toda ordem na economia, seguidas desonerações fiscais sem rumo e sem sentido, controle de preços, contabilidade fiscal criativa e a desastrosa “Nova Matriz Macroeconômica”. Desmonte geral. O crescimento despencou, embora a taxa de desemprego, por razões demográficas e estruturais, tenha permanecido baixa. A confiança desabou. O Brasil virou patinho feio dos mercados internacionais de capitais, particularmente depois do escândalo do petrolão.
O jeito petista de governar era um mito. Seus equívocos acarretaram baixo crescimento e perda de oportunidades. Apesar disso, defesas construídas anteriormente nos protegem de uma crise de balanço de pagamentos do tipo que nos infelicitava. Não é pouco, mas merecíamos bem mais.
Fonte: Veja, 12/1/2015