Diplomacia e Relações Internacionais
O apagao moral da diplomacia companheira - Revista Veja
Crime de Putin? Azar das vítimas / Sangue em Gaza? Culpa só de Israel
Leonardo Coutinho e Tatiana Gianini
Revista Veja, 26/07/2014
O apagão moral da política externa de Brasília se revela pela indignação seletiva: silêncio total ou estridência sobre atrocidades depende de ideologia, não de princípios universais consagrados
A diplomacia e o direito de imprimir dinheiro são prerrogativas do governo. Nenhum cidadão pode fabricar as próprias cédulas ou ter uma política externa individual em que decida declarar guerra contra outra nação ou favorecer uma em detrimento de outra. O cidadão, porém, pode exigir que o governo se comporte nesses campos em que detém o monopólio decisório à maneira de seu médico ou seu advogado. Ou seja, que cuide da saúde da moeda e da adequação da política externa como um representante informado e capaz de seus mais preciosos interesses. Quando um governante pauta a diplomacia não pelo interesse nacional, mas por sua ideologia particular ou de seu grupo político, ele está agindo como um médico ou advogado que ignora o juramento de usar seu conhecimento e técnica pelo bem do paciente ou cliente. A diplomacia brasileira sob o petismo vem cometendo exatamente esse tipo de desvio de conduta. Age com solene desprezo pelo interesse nacional brasileiro, em benefício da ideologia torta do partido no poder.
Esse apagão moral na política externa brasileira foi demonstrado em sua plenitude na semana passada, com o silêncio total sobre o crime do Boeing cometido pela Rússia, seguido do ataque a Israel, vítima preferencial do terrorismo, cercado por inimigos que consideram ilegítima sua própria existência e pregam abertamente que o país seja varrido do mapa. Enquanto isso, somava-se à iníqua política de indignação seletiva do governo brasileiro a vergonhosa subserviência oficial a Raúl Castro, ditador cubano que por alguns dias se instalou em Brasília como se fosse o dono da casa. São situações que demonstram a falência moral da política externa de Dilma Rousseff — uma das deformações que herdou do lulismo e que cuidou de amplificar.
Dilma está confundindo o interesse partidário com realismo e pragmatismo, dois pilares de uma diplomacia respeitada por outras nações. Ignorar o crime de guerra de Putin na Ucrânia e agir com estridência descabida e unilateralismo contra Israel é uma dubiedade moral inaceitável e uma traição às melhores tradições diplomáticas brasileiras, que sempre nos colocaram ao lado da paz, da amenização de conflitos e da democracia — não da ditadura ou do terrorismo.
Na batalha moral com o filósofo Jean-Paul Sartre, que preferiu compactuar com os horrores cometidos pelo soviético Josef Stalin, o escritor argelino Albert Camus rompeu os laços com o amigo para preservar a sua estatura ética. Em uma análise de um conflito em seu país natal, em 1956, disse: "Quaisquer que sejam as origens antigas e profundas da tragédia argelina, um fato permanece: nenhuma causa justifica a morte de inocentes". Já depois da II Guerra, o mundo começou a caminhar para considerar que a ocorrência de vítimas humanas em conflitos, independentemente do país a que pertenciam ou dos argumentos usados, deveria ser igualmente condenável. Nos rituais diplomáticos, a reação passou a vir em notas de condolência, em que os governos lamentam as tragédias, fossem elas de causas naturais ou humanas. Nos últimos dias, o mundo tem assistido a uma porção delas.
Em Gaza, os ataques do governo israelense contra o grupo terrorista Hamas produziram em torno de 800 mortos desde o início do mês. Mais de trinta israelenses morreram, ou por terem sido atingidos por foguetes do Hamas, ou por entrarem em combate direto com os terroristas. Há duas semanas, no leste da Ucrânia, 298 pessoas que estavam a bordo do voo MH17, da Malaysia Airlines, perderam a vida depois que um míssil lançado por separatistas, apoiados pela Rússia, acertou o Boeing 777. Surpreendentemente, esses eventos têm merecido atenção diferenciada do governo brasileiro. Os ataques de Israel foram condenados pelo Itamaraty como uso "desproporcional da força", enquanto não se fez nada em relação às vítimas dos separatistas na Ucrânia. A vida de alguns inocentes pode ser mais importante que a de outros? Pela moralidade do governo brasileiro, sim. Se os assassinos nutrem a mesma linha ideológica, não há nada a ser dito. Caso a proximidade seja com as vítimas, então o reproche é total. Na semana passada, a dubiedade brasileira foi criticada pelo porta-voz da chancelaria israelense Yigal Palmor (veja a entrevista nas págs. 66 e 67), para quem o Brasil não passa de um anão diplomático.
As palavras de Palmor foram uma resposta a uma nota do Itamaraty. Na quarta-feira 23, o órgão responsável pelas relações internacionais divulgou um texto condenando a ação de Israel na Faixa de Gaza (veja a matéria na pág. 74). O texto omitiu os ataques dos terroristas do Hamas. "O Brasil só se posiciona contra Israel porque existe o antissemitismo implícito em políticas de alguns grupos de esquerda, mas não condena a Líbia, o Irã, a Síria, a Turquia. É a conivência com o terror. Em alguns casos, com o Hamas", diz o filósofo Denis Rosenfield. Chanceler de fato do Brasil, o assessor especial para Assuntos Internacionais da Presidência da República, Marco Aurélio Garcia (o chanceler de direito chama-se Luiz Alberto Figueiredo e há uma foto dele na página 72), foi quem deu o tom da diplomacia. "O que estamos assistindo no Oriente Médio, pelo amor de Deus, é um genocídio, é um massacre", disse ele. O Brasil convocou o embaixador em Israel, o que na liturgia diplomática significa o grau mais fraco de insatisfação em uma escala em que o mais forte é o rompimento de relações.
A omissão sobre a queda do avião com 298 pessoas a bordo na Ucrânia tem outra natureza. Suas raízes estariam no antiamericanismo, que passou a dominar as relações exteriores desde o mandato do presidente Lula. Ao afastar-se da democracia mais consolidada do mundo, o Brasil se aproximou das piores autocracias do planeta, de ditadores e de genocidas. Entre eles está o presidente russo Vladimir Putin. O míssil supersônico que abateu o Boeing 777 da Malaysia Airlines partiu de uma bateria antiaérea de fabricação russa operada por paramilitares apoiados pelo governo de Putin. Quando soube da queda da aeronave, na quinta-feira 17, a presidente Dilma Rousseff pediu prudência àqueles que culpavam a Rússia pelo atentado e insinuou, repetindo a estapafúrdia propaganda de Moscou, que poderia se tratar de um ataque contra o seu camarada russo. A morte de quase 300 pessoas inocentes passou em branco.
Outro traço do antiamericanismo tem sido o apoio irrestrito à ditadura cubana. Na mesma quinta-feira em que Dilmadefendia Putin, o ditador cubano Raúl Castro foi pilhado no comando da Granja do Torto, uma das residências oficiais destinadas ao uso exclusivo do presidente da República — do Brasil, para que não restem dúvidas. Raúl dispensou os servidores brasileiros e os substituiu por cubanos. Em vez de usar a Embaixada de Cuba para despachar, transformou as dependências da Granja do Torto em Brasília na sua "embaixada pessoal". Recebeu o colega boliviano Evo Morales, com quem fechou uma parceria para a construção de uma fábrica de sucos de frutas na Bolívia. Em seguida, recebeu o presidente colombiano Juan Manuel Santos para tratar dos acordos de paz entre o governo e os terroristas das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), que têm sido realizados em Havana. Dilma disse que a cortesia foi um gesto de reciprocidade. "Se alguém tem preconceito com Cuba, que não misture o preconceito com essas relações que são relações diplomáticas de alto nível", disse Dilma, que jamais se hospedou nas várias casas que os irmãos Castro possuem na ilha (em todas as visitas oficiais ao país caribenho ela se instalou no hotel Meliá Cohiba). Nos três primeiros anos de governo, ela recebeu 21 chefes de Estado, um terço do que ocorreu com no mesmo período. Avessa à política internacional, Dilma transformou o Itamaraty em um órgão que funciona sob demanda do Planalto. "Nossa diplomacia tem se caracterizado por uma ausência de rumos claros", diz o embaixador José Botafogo Gonçalves. Pode ser, mas Putin, o ditador Castro e os terroristas do Hamas estão muito satisfeitos.
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