Diplomacia e Relações Internacionais
No comeco, era a fatwa... contra Rushdie - um texto de Janer Cristaldo, de 2006
Sempre é bom reler Janer Cristaldo, não só para relembrar coisas antigas, mas também pelo prazer da ironia, que na verdade é sinceridade, sem a hipocrisia do politicamente correto.
Pois é mesmo de hipocrisia que ele fala neste artigo republicado no ebook
O Supremo Apedeuta (quase um profeta), que vocês podem ler neste link:
http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/supremo.htmlDestaco de sua crônica uma decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos, de 1976:
“A liberdade de expressão vale não apenas para as informações ou idéias acolhidas com favor, mas também para aquelas que ferem, chocam ou inquietam o Estado ou uma fração qualquer da população. Assim o querem o pluralismo, a tolerância e o espírito de abertura, sem o qual não existe sociedade democrática”. Paulo Roberto de Almeida
Hipocrisia muçulmana
Janer Cristaldo, 07/02/2006
Tudo começou em 1989, quando o indiano Salman Rushdie publicou
Versículos Satânicos. Neste livro, Rushdie reproduziu os versículos Gharanigh, não aceitos pelos canonistas do Corão. Trocando os queijos de bolso – ou
mutatis mutandis, como preferem os juristas – é como se no Ocidente fossem publicados os evangelhos apócrifos ou gnósticos, não aceitos pela Igreja Católica, que aliás são publicados em várias línguas do Ocidente. Embora fosse indiano com nacionalidade britânica, Rushdie foi alvo de uma
fatwa do aiatolá Khomeini, então todo-poderoso da “revolução” no Irã:
“
Eu informo o orgulhoso povo muçulmano do mundo inteiro que o autor do livro Os Versículos Satânicos, que é contrário ao Islã, ao Profeta e ao Corão, assim como todos os implicados em sua publicação e que conhecem seu conteúdo são condenados à morte. (...) Apelo a todo muçulmano zeloso a executá-los rapidamente, onde quer que eles estejam. (...) Todo aquele que for morto nessa empreitada será considerado mártir”.
A Europa aceitou tranquilamente a sentença do aiatolá. Em vez de isolar o Irã, o Reino Unido passou a dar proteção a Rushdie. Os demais países da comunidade se mantiveram em silêncio obsequioso. Sem atinar que não se tratava apenas de proteger um escritor perseguido. Mas de repudiar a pretensão megalômana de um padre persa, que pretendeu legislar inclusive no estrangeiro. A apostasia, ou crime, segundo os muçulmanos, havia ocorrido em Londres, com a publicação do livro. Do alto dos minaretes de Teerã, Khomeiny ordenou não só a condenação à morte – como também a execução da sentença – de Rushdie, assim como todos os implicados na publicação do livro… em território europeu ou onde quer que estes “criminosos” estivessem. Em 1991, o tradutor do livro para o japonês foi assassinado e em 1993 o editor de Rushdie na Noruega foi atacado quando saía de casa.
Só a apatia dos países europeus, na época, pode explicar a reação desmesurada dos árabes às caricaturas anódinas de um obscuro jornal do sudoeste da Dinamarca. Se as democracias ocidentais cortassem relações com o regime do aiatolá naqueles dias, provavelmente não estaríamos vendo hoje as fogueiras histéricas em toda a Europa e países muçulmanos, onde se queimam bandeiras da Dinamarca e Noruega.
Reação tardia, diga-se de passagem. As doze caricaturas de Maomé foram publicadas dia 30 de setembro do ano passado, no
Jyllands-Posten, e reeditadas no 10 de janeiro passado pelo jornal norueguês
Magazinet. Jornais que não circulam no mundo árabe e muito menos na Europa, mas apenas na Dinamarca e Noruega, dois países de minorias lingüísticas. A reação muçulmana revelou-se uma estratégia de jerico. As charges publicadas no jornal da Jutlândia estão hoje reproduzidas na Internet e nos principais jornais do Ocidente.
Embora uma das charges mostre a cabeça de Maomé formada por uma bomba, não é isto o que preocupa os muçulmanos. Seria absurdo protestar contra caricaturas, um recurso rotineiro do jornalismo desde priscas eras. Alegam então que a religião islâmica proíbe imagens do profeta ou de Alá. O que não passa de um esfarrapado pretexto para agredir a Europa. Iconografia sobre Maomé é o que não falta no Ocidente e inclusive no mundo árabe. Enciclopédias, livros e jornais publicaram desde sempre imagens de Maomé e só hoje, em 2006, os muçulmanos houveram por bem manifestar indignação. Hipocrisia deslavada.
Sem ir muito longe, dou dois passos até minhas estantes e apanho o
Diccionario Literario Bompiani, editado em Barcelona, 1963. No segundo volume de Autores, no verbete Mahoma, há nove gravuras do profeta, na maioria da Universidade de Edimburgo, desde seu nascimento até a colocação da pedra negra na Caaba e o encontro com o arcanjo Gabriel. Estas duas últimas gravuras estão em miniaturas de manuscritos árabes. Há também uma miniatura persa do século XV, na qual Maomé monta um camelo ante sua mulher Khadigia. Ou seja, mesmo em universo muçulmano a imagem do profeta já era reproduzida. Este soberbo dicionário (15 volumes) está publicado nas principais línguas da Europa e nunca vi muçulmano algum condená-lo por blasfêmia. A julgar-se pela escalada da violência, vão acabar pedindo a proibição da
Divina Comédia, onde Dante joga o profeta no oitavo círculo do Inferno, destinado aos semeadores de discórdia.
Em vez de protestar contra os jornais, os muçulmanos queimam bandeiras e embaixadas dos países envolvidos na
affaire. Dirigem-se não aos jornalistas, mas aos Estados.
Para um muçulmano, é óbvio que todo Estado tem controle da imprensa. Esta é a norma nas teocracias árabes, onde não há liberdade alguma de expressão. Estes senhores precisarão de mais alguns séculos para entender que, em países democráticos, a imprensa é uma instituição que limita inclusive os desmandos do Estado.
Se criticar religiões ou deuses fosse proibido no Ocidente, a Europa ainda chafurdaria nas trevas da Idade Média. O Ocidente sempre foi crítico em relação a seus deuses, e mesmo Jeová, o único, teve de ouvir poucas e boas de pensadores e poetas como Voltaire, Diderot, Guerra Junqueiro ou Nietzsche. Ainda há pouco, eu escrevia: na Europa de hoje você pode dizer o que quiser até mesmo da mãe do Cristo. Só não pode criticar Maomé.
Y a las pruebas me remito, como dizem os espanhóis. Ano passado, terminei a leitura de
La Virgen María – Biografia no autorizada, do jornalista britânico Michael Jordan. Neste gordo ensaio de 400 páginas, com base nos evangelhos apócrifos, o autor sustenta a tese de que Maria teria sido uma das prostitutas sagradas. A tradução que tenho em mãos foi publicada em Barcelona e o texto original em Londres. Escândalo algum no Ocidente. Ora, na escatologia cristã Maria tem quase o status de uma deusa. Nem por isso alguém saiu a queimar embaixadas ou livros em protesto contra o autor. Imagine o leitor se alguém afirmar que Maomé seduziu e violou Zainab, a mulher de um pupilo. Ou que casou-se com Aisha, quando esta tinha nove anos.
Que a religião islâmica proíba imagens de Maomé, nada temos contra. Mas não venham estes cortadores de clitóris pretender que países não islâmicos proíbam a seus jornais, enciclopédias, bibliotecas publicar as ditas imagens. Os alaridos do mundo árabe não passam de mera farsa. Que acesso têm à imprensa habitantes de um universo majoritariamente analfabeto? Que acesso tem o mundo árabe a dois jornais da Escandinávia?
A onda de protestos não passa de uma agressão planejada à Europa, fruto do ressentimento de habitantes e imigrantes do Terceiro Mundo muçulmano.
Chefes de Estado europeus estão se desmanchando em salamaleques aos árabes, pedindo desculpas pelas ofensas ao Islã. No fundo, negam – ou propositadamente esquecem – o acórdão de Handyside, reconhecido pela Corte Européia de Direitos do Homem, em 1976. Que reza:
“A liberdade de expressão vale não apenas para as informações ou idéias acolhidas com favor, mas também para aquelas que ferem, chocam ou inquietam o Estado ou uma fração qualquer da população. Assim o querem o pluralismo, a tolerância e o espírito de abertura, sem o qual não existe sociedade democrática”.Mas de nada adianta falar de democracia para brutos.
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