Minitratado das corporações de ofício - Paulo Roberto de Almeida
Diplomacia e Relações Internacionais

Minitratado das corporações de ofício - Paulo Roberto de Almeida


Minitratado das corporações de ofício
Paulo Roberto de Almeida
(ver toda a série neste link)

Um amigo meu me escreve para dizer que está sendo perseguido por uma poderosa corporação de ofício; enviou-me seu protesto por escrito: “Sou Réu” (até me forneceu o número do processo). Bem, não vou poder ajudá-lo como eu (ou ele) gostaria, pois não tenho esse poder; aliás, nem sou advogado, o que por acaso me lembra que eu tampouco pertenço, profissionalmente, a qualquer uma dessas poderosas organizações dedicadas a preservar o seu monopólio profissional (e, adicionalmente, a achacar consumidores, como eu e você). Sou apenas da modesta tribo dos sociólogos, não tão poderosa nem tão bem organizada quanto a dos advogados, a dos engenheiros, a dos arquitetos, a dos médicos, a dos economistas e as de muitas outras corporações dedicadas ao fechamento dos mercados, de forma a converter todos os demais cidadãos em seus obrigados clientes (mais propriamente em servos indefesos).
Meu amigo é economista e está sendo cobrado por várias mensalidades atrasadas pelo Conselho Regional de Economia da jurisdição onde ele se formou e onde logo em seguida se registrou, no entusiasmo do momento. Acontece que ele nunca se exerceu profissionalmente como economista e, logo depois de formado, foi fazer mestrado e doutorado no exterior; em sua volta, começou a trabalhar em áreas diferentes das que supostamente se exigem habilidades e conhecimentos restritos aos de um economista profissional ou exclusivos dessa “corporação”. Mais do que cobrado, ele está sendo processado, e suponho que o mesmo deva ter acontecido também com outros cidadãos formados e inscritos numa corporação qualquer e que se “esquecem” de pagar a taxa da sua corporação. Este é, portanto, o tema deste minitratado.

A questão central é esta: o que são, o que fazem, e qual o impacto para os cidadãos da atuação dessas corporações de ofício que aprisionam seus “associados” e submetem todos os demais cidadãos ao seu poder monopolístico? Seria possível escapar de suas reservas de mercados, subtrair-se à ditadura corporativa, eliminar o seu jogo monopolístico, que tem óbvias implicações em termos de transferência de renda?
As modernas corporações são o que restou, no mundo contemporâneo, das antigas ordens profissionais medievais, quando artesãos e trabalhadores especializados estavam reunidos numa comunidade legalmente reconhecida de profissionais dotados de uma autorização superior que os habilitava a explorar legalmente uma reserva de mercado (mediante um pagamento qualquer à autoridade concedente). Em contrapartida, eles tinham o monopólio exclusivo – o que parece uma redundância, mas neste caso é justificado – de não apenas oferecer seus serviços e produtos à comunidade colocada sob a jurisdição daquela autoridade, como também de impedir qualquer outra pessoa de também oferecer esses mesmos bens e serviços fora da comunidade assim registrada.
Todas as cidades medievais da Europa ocidental (e mesmo em Estados organizados do Oriente, como na China, por exemplo), tinham suas corporações de ofícios, eventualmente divididas em seções ou corpos especializados. Mesmo os acadêmicos, os intelectuais universitários, constituíam (e de certa forma ainda constituem, hoje em dia) uma comunidade fechada, uma casta de monopolistas do saber e do conhecimento especializado. Novas corporações iam surgindo – por exemplo, os impressores, com a invenção da imprensa móvel – e as mais velhas tratavam de preservar seus monopólios mesmo quando o ofício se mostrava defasado tecnologicamente (fabricantes de velas, ou se chapéus, ou qualquer outra atividade superada pelo tempo).
A Revolução francesa mudou um pouco, mas só um pouco, esse panorama, ao abolir as corporações fechadas e ao começar a regular as relações de trabalho e entre agentes econômicos por meio dos códigos modernos (civil, de comércio, etc.). As antigas corporações foram substituídas por essas ordens que nos mantêm aprisionadas aos seus monopólios privados (oficialmente sancionados). De certa forma, elas se disseminaram tremendamente no mundo moderno, em especial em países que não se libertaram, de verdade, do passado medieval ou da centralização absolutista.
Portugal, por exemplo, manteve durante muito tempo esse mesmo sistema, que se estendia além da vida civil e cobria o próprio Estado, através da venda de ofícios públicos (uma das fontes mais rendosas de recursos para os cofres do rei, até o surgimento de monopólios oficiais sobre produtos “estratégicos” e metais e gemas preciosas, como ouro e diamantes). O Brasil republicano pode ter eliminado alguns desses monopólios, mas conservou alguns dos velhos e criou vários novos monopólios.
Médicos e advogados constituem, claramente, as duas espécies mais antigas de uma categoria que abrange hoje diversas outras profissões fechadas, e que dispõem de privilégios “medievais” ao limitar a concorrência e ao impor suas próprias regras ao conjunto da sociedade. A justificativa usada para legitimar o monopólio legal é sempre a de que essas “ordens” contribuem para elevar a qualidade da formação e da prestação de serviços à população e que estabelecem padrões uniformes de atendimento aos mercados de usuários. Na sombra dessas corporações mais antigas foram surgindo outras, como a dos engenheiros e arquitetos (hoje separadas), a dos contabilistas, da qual saíram os economistas, além de uma infinidade de outras que pretendem também exercer o monopólio sobre o exercício de determinadas atividades.
O debate é obscurecido pela confusão entre o reconhecimento profissional – o que geralmente se faz no âmbito da formação acadêmica – e a regulamentação profissional, que obviamente visa ao fechamento do mercado, com restrições legais aos não reconhecidos. Era, por exemplo, o que existia em relação aos jornalistas, seres perfeitamente normais – como eu e você, que sabemos ler e escrever – mas que se pretendiam (e ainda pretendem) exercer o monopólio sobre qualquer atividade que implique redação e publicação de algum pasquim ou veículo de comunicação. Você acredita realmente, caro leitor, que um boletim de uma categoria profissional qualquer – digamos até mesmo uma nobre profissão, de cidadãos perfeitamente alfabetizados, como a dos diplomatas – necessita de um jornalista profissional, credenciado pelo Ministério do Trabalho para ser montado, publicado e distribuído?
Esse talvez seja o menor dos abusos perpetrados contra os interesses dos cidadãos por essas modernas corporações de ofícios, ainda que todas elas contribuem para fechar os mercados e impor preços extorsivos aos consumidores compulsórios, que somos todos nós. Pior, a qualidade dos serviços nem sempre é garantida: quem pode assegurar, por exemplo, que é melhor ter um jornalista generalista escrevendo um pouco sobre todos os assuntos, em lugar de economistas, administradores e outros especialistas atuando como jornalistas? A sociedade sempre estará melhor com a maior competição possível, não com restrições e sistemas fechados. A abolição da reserva de mercado para jornalistas – que o lobby dos próprios e de alguns representantes políticos está tentando restabelecer – representou um enorme progresso social, e um passo na boa direção.
Meu amigo me informa que está sendo processado: “Recebo agora uma comunicação de que estou sendo processado. Querem de mim as mensalidades atrasadas. Na verdade, os valores são modestos, muito menos do que vale o meu tempo e o do advogado para lidar com essa briga. Mas sou teimoso. Por princípio, não quero pagar.” Imagino que, como ele, outros profissionais – economistas, advogados, arquitetos – também estariam melhor se pudessem exercer seus talentos à margem de qualquer regulamentação profissional. Se eles precisam pautar-se pelas normas e padrões estabelecidos por uma máfia organizada, o leque de serviços que eles poderiam oferecer livremente à sociedade diminui significativamente.
Alguns desses serviços, aliás, são impostos compulsoriamente à sociedade. Por que, por exemplo, dois adultos, atuando em legítimo consenso para lograr um simples divórcio corriqueiro, necessitam ainda assim dos serviços de um advogado imposto legalmente para certificar que eles o fazem no pleno domínio da razão? Por acaso a OAB pensa que todos os adultos em instância de divórcio são perfeitos idiotas, a necessitar de “aconselhamento legal” mesmo na ausência do que aconselhar? Ou seria apenas uma maneira legal, aliás compulsória, de extorquir dinheiro dos cidadãos.
Será que seria possível a um advogado processar a OAB por extorsão legal? Um advogado, hipoteticamente, que pretendesse atuar à margem da OAB, e deixar de pagar suas mensalidades extorquidas, poderia processar a OAB por coação abusiva? Sei que a OAB – assim como o Conselho de Economistas, ou outras corporações mafiosas – tem o direito de processar advogados que não pagam o pedágio exigido, mas por que não poderia ser o contrário?
Por que a sociedade brasileira não começa a desmantelar suas máfias corporativas e outras associações de extorsão legal? Por que não podemos libertar profissionais e cidadãos das castas organizadas para exercer monopólios abusivos? Poucas profissões são capazes de “matar”, literalmente, os cidadãos se as práticas forem liberadas: elas são efetivamente em número muito reduzido. Todas as outras, incapazes de prejudicar os cidadãos – mas que os estão de fato prejudicando mediante regulamentos absurdos – deveriam ser desregulamentadas e liberalizadas. Estaríamos muito melhor sem monopólios e reservas de mercado. Libertem-se desses grilhões, cidadãos!

Brasília, 9 de julho de 2011



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