Embora ateu, sou fascinado pela literatura bíblica, como, imagino, alguns dos 18 heróis já devem ter percebido. Li recentemente um estudo sensacional a respeito, mais precisamente sobre a evolução da interpretação das Escrituras, “How to Read the Bible”, de James L. Kugel, e aprendi que, de acordo com a visão tradicional, cada palavra da Bíblia seria carregada de significado. Eventuais inconsistências seriam, portanto, apenas fruto das dificuldades de interpretação, pois a palavra divina não admitiria falhas.
Entendimento semelhante têm os economistas que, oito vezes por ano, uma semana após a reunião do Comitê de Política Monetária (Copom) em que o Banco Central decide sobre a taxa de juros básica (Selic), se acotovelam para ler a ata da reunião em busca de pistas acerca das próximas decisões, assim como suas prováveis consequências.
Cada palavra é sopesada, assim como adições ou subtrações em relação às versões anteriores do documento, ou mesmo a ordem dos parágrafos. Nada é por acaso e cada vírgula pode indicar o rumo futuro das taxas de juros.
Isto dito, a exegese da última ata deixou poucas dúvidas acerca das intenções do BC. A eliminação da referência à “continuidade” do processo de ajuste monetário, a introdução do termo “neste momento” para qualificar a decisão de elevar mais uma vez a taxa de juros, assim como a menção a uma “política monetária vigilante” (não mais “especialmente vigilante”) oferecem indicações claras que o BC deseja parar o aperto monetário.
Por outro lado, a evolução da inflação não condiz com este anseio. Na véspera da divulgação da ata soubemos que a inflação atingiu 0,92% em março e 6,15% nos últimos 12 meses, taxa perigosamente próxima à máxima permitida pelo sistema de metas (6,5%), que, a propósito, deve ser ultrapassada com folga nos próximos meses.
Não faltou, é claro, quem procurasse reduzir a relevância do número desastroso. Condições climáticas fizeram com que os preços dos alimentos “in natura” saltassem no mês, contaminando o índice de inflação. Como, porém, este processo seria temporário, não caberia ao BC reagir nem à população ficar alarmada com os desenvolvimentos recentes.
Trata-se de já conhecida conversa para boi dormir. Sim, preços de alimentos subiram muito por causa da seca, mas quem faz este argumento deixa convenientemente de lado o virtual congelamento dos preços administrados pelo governo, como energia, combustíveis, passagens de ônibus, que têm atuado do lado contrário (em março, por exemplo, caíram 0,02%, acumulando alta de apenas 3,4% nos últimos 12 meses).
De fato, se desconsiderarmos tanto o impacto dos alimentos consumidos em casa como o das tarifas públicas chegaríamos à conclusão de que o conjunto dos demais preços aumentou nada menos do que 0,88% no mês, valor apenas levemente inferior ao registrado pelo IPCA “cheio”. Mais grave, esta medida, “limpa” de ambos efeitos, mostra inflação de 7,36% nos últimos 12 meses, bastante superior à registrada pelo IPCA.
Diga-se, aliás, que esta conclusão também é válida para as demais medidas de inflação que tentam justamente eliminar eventuais efeitos de preços muito voláteis ou sujeitos à intervenção governamental (os chamados “núcleos de inflação”).
A aceleração inflacionária não resulta, pois, de preços de alimentos nem tem caráter temporário. Pelo contrário, vai muito além dos alimentos (a inflação de serviços supera 9%) e é disseminada (no mês passado 72% dos itens não alimentícios do IPCA subiram de preço).
Neste contexto, o BC até pode fingir que não tem nada a ver com o problema e parar o ciclo de aperto monetário com a Selic nos atuais 11% (ou mesmo em 11,25%).
Não vai, porém, escapar de ter que voltar ao tema uma vez passadas as eleições. Problemas não desaparecem porque sua solução é adiada; apenas voltam vitaminados a requerer doses muito maiores de sacrifícios.
Fonte: Folha de S. Paulo, 16/04/2014