Diplomacia e Relações Internacionais
Direitos Humanos: MRE vs ONG, um debate saudavel
Direitos humanos a sérioOscar Vilhena Vieira
O Estado de S.Paulo, 25 de agosto de 2010
Em recente artigo publicado na imprensa, o ministro Celso Amorim busca refutar as crescentes objeções que vêm sendo feitas à política externa brasileira no campo dos direitos humanos. O fato de o chanceler vir a público justificar a condução da política externa é, em si, um avanço. A manifestação também é positiva na medida em que reitera o compromisso do governo com os direitos humanos. O que se pretende aqui questionar é se as premissas e as ações do governo são condizentes com esse compromisso, reiterado pelo ministro.
De acordo com Amorim "reprimendas ou condenações públicas" não constituem o melhor caminho para obter o respeito aos direitos humanos. A seu ver, é mais eficaz dar o "exemplo e, ao mesmo tempo, agir pela via do diálogo franco". Essa premissa, além de moral e juridicamente discutível, não pode ser comprovada faticamente. São inúmeras as experiências em que a denúncia e a pressão internacional desempenharam papel fundamental na derrubada de regimes violadores, como o emblemático caso sul-africano. Teria sido melhor se a comunidade internacional, incluindo as Nações Unidas, em vez de denunciar e impor duras medidas ao regime racista, tivesse apenas buscado o diálogo respeitoso com seus líderes? Teria sido melhor que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que no final dos anos 1970 denunciou corajosamente a tortura e os desaparecimentos forçados na Argentina e no Chile, tivesse optado pelo diálogo com Augusto Pinochet ou Jorge Videla? Por acaso as denúncias feitas pelo presidente Jimmy Carter em 1977 sobre a tortura no Brasil não contribuíram para a redemocratização? Deveria ter optado por uma atuação mais discreta, para não incomodar nossos generais?
O diálogo e a persuasão são instrumentos não apenas válidos, como importantes, mas não podem dispensar o reconhecimento público das violações, a responsabilização dos violadores e a reparação às vítimas, especialmente pelos mecanismos internacionalmente concebidos para proteger os direitos humanos. Ao se propor uma atuação "conciliadora" não apenas de Estados, mas dos próprios mecanismos multilaterais de direitos humanos, a política brasileira tem contribuído para fragilizar esses mesmos mecanismos, com consequências nefastas para as vítimas.
Ao buscar superar o maniqueísmo e a seletividade que imperam na conduta de muitos países do Norte, o Brasil corre o risco de criar um novo maniqueísmo e uma nova seletividade. Muitas das recentes manifestações do Brasil no Conselho de Direitos Humanos da ONU têm causado inconformismo entre aqueles que tomam os direitos humanos a sério. É o que se pode identificar nos casos de Irã, Sri Lanka, Mianmar, Sudão (Darfur), República Democrática do Congo, em que a participação brasileira não se alinhou a resoluções voltadas para apurar as violações, responsabilizar os violadores ou mesmo manter mecanismos internacionais para aferição de tais violações. O Brasil parece estar criando uma nova seletividade, em que o que importa não é a natureza ou a gravidade das violações, mas a origem das acusações ou a proximidade política com o violador. No caso do Sri Lanka, o Brasil juntou-se ao próprio governo desse país, a Cuba, Paquistão, Irã e Sudão, entre outros governos não-democráticos, para derrubar uma resolução proposta pela União Europeia. O Brasil já vinha se comportando seletivamente na antiga Comissão de Direitos Humanos. Basta verificar como se manifestou em relação às resoluções que cuidavam de violações na China, na Chechênia, no Zimbábue e em Belarus. Esse mesmo padrão de diálogo não se aplica, por exemplo, quando o assunto é a condenação das violações promovidas por Israel no caso dos palestinos. O Brasil, porém, não ousa promover resoluções que condenem as violações sérias e existentes em países do Norte, como, por exemplo, as conhecidas manifestações contra os direitos básicos dos prisioneiros de Guantánamo.
O caso da Coreia do Norte talvez seja o mais emblemático. Apesar de gravíssimas denúncias de existência de campos de concentração e execuções de dissidentes políticos, e das inúmeras demonstrações de que o regime de Pyongyang não está disposto a cooperar, o Brasil vislumbrou uma "janela de oportunidades" e negou-se a apoiar uma resolução que propunha renovar o mandato do relator especial para aquele país. Somente depois de ver suas propostas ignoradas pelo regime totalitário de Pyongyang e ser interpelado pelo Ministério Público Federal, o Itamaraty finalmente mudou sua posição. O resultado desse processo foi o estabelecimento de um conjunto de recomendações ao governo para que não mais olvide suas obrigações constitucionais no trato das questões de direitos humanos.
A política de direitos humanos brasileira tem avançado em diversas frentes, como na discussão sobre propriedade intelectual, medicamentos, meio ambiente e luta contra a pobreza, porém tem se demonstrado ambígua quando se reporta às violações cometidas por regimes repressivos. Se o Brasil quer representar algo novo no cenário internacional, não apenas no aspecto econômico, mas também ético, não pode mais invocar o "simplório" e ultrapassado princípio da não-interferência; não pode mais praticar uma seletividade enrustida e ressentida; não pode mais fragilizar a autoridade dos mecanismos internacionais de direitos humanos e das ONGs que operam nesse campo.
Se a proposta é estabelecer um "diálogo franco", isso significa disposição para o reconhecimento das violações, responsabilização dos violadores e reparação às vítimas. Esta, porém, não parece ser a postura de muitos dos interlocutores do governo brasileiro.
DIRETOR JURÍDICO DA CONECTAS DIREITOS HUMANOS, É PROFESSOR DA ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO DA FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS
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