Diplomacia e Relações Internacionais
Direitos humanos: apontando o dedo... para tras...
Direitos humanos às escurasSergio Fausto
21 de agosto de 2010
Em artigo na Folha de S.Paulo no domingo passado, o chanceler Celso Amorim criticou a diplomacia do "dedo em riste" na área dos direitos humanos. Afirmou que esta agrada à plateia, mas não protege de fato as vítimas de violações daqueles direitos. Mais eficazes seriam as negociações de bastidores com os Estados violadores, conforme proposta apresentada pelo Brasil ao grupo de 19 países incumbido de refletir sobre o fortalecimento do Conselho de Direitos Humanos da ONU.
A manifestação de Amorim - que parece ter-se esquecido da importância das pressões internacionais para o fim do apartheid na África do Sul e das ditaduras militares na América do Sul - indica que continuamos a distanciar-nos da política externa seguida pelo País nessa área, desde o retorno à democracia até o governo Lula.
Nesse período não praticamos a diplomacia do "dedo em riste" nem deixamos de reconhecer com realismo os limites da ação externa para proteção dos direitos humanos, muito menos de ponderar pragmaticamente os nossos interesses econômicos e políticos. No entanto, marcamos com clareza o compromisso com o valor universal dos direitos humanos. Subscrevemos um conjunto de convenções internacionais (a começar pela Convenção Contra a Tortura) que nos havíamos recusado a assinar sob a ditadura militar. E inscrevemos na Constituição a determinação legal que dá prevalência aos direitos humanos na condução da política externa.
No atual governo acumulam-se sinais de mudança. Discretos, mas significativos, na atuação do Brasil no Conselho de Direitos Humanos da ONU. Visíveis nas ações e nas palavras dos principais formuladores da política externa, a começar pelo presidente da República.
A nova orientação da política externa obedece a um diagnóstico segundo o qual o tema dos direitos humanos é manipulado pelas grandes potências ocidentais. Ninguém o exprime melhor do que Samuel Pinheiro Guimarães. Para o ex-segundo homem do Itamaraty e hoje ministro de Assuntos Estratégicos, a defesa dos direitos humanos "dissimula, com sua linguagem humanitária e altruísta, as ações táticas das grandes potências em defesa de seus interesses estratégicos". O alvo da crítica são, principalmente, os Estados Unidos, cuja hegemonia no sistema internacional representaria um dos principais obstáculos, se não ameaça, à projeção do Brasil na cena global, como se lê em seu livro Desafios Brasileiros na Era dos Gigantes. Ou seja, a defesa dos direitos humanos, assim como a defesa da não-proliferação nuclear, presta-se, na prática, ao congelamento do poder mundial tal como hoje se distribui. O resto seria retórica, mal ou bem-intencionada.
Se queremos e podemos tornar-nos um dos gigantes do mundo, e se a defesa dos direitos humanos não é senão a forma como os interesses das "potências ocidentais" se travestem em preocupações humanitárias, o objetivo do Brasil deve ser o de remover a maquiagem ideológica que recobre o tema nos fóruns multilaterais. Não para afirmar o valor em si, e nossas credenciais diferenciadas em relação a ele, mas para relegá-lo a um plano secundário. Quem sabe, com o propósito de livrar-nos dos constrangimentos que a deliberação à luz do dia sobre eventuais casos de violação dos direitos humanos pode impor à nossa movimentação internacional, agora que, acredita-se, nos estamos tornando um dos gigantes do planeta.
Fazer alianças pontuais para questionar a distribuição de poder atual no mundo é objetivo legítimo e oportuno. Ele vem sendo, porém, perseguido ao preço da leniência com violadores contumazes dos direitos humanos. Fica a impressão, certa ou errada, de que a proposta defendida por Amorim tem entre suas motivações a de reduzir o dano moral que a política externa do atual governo na área dos direitos humanos provoca na imagem internacional do Brasil. Figurativamente, em vez de repensar nossa atuação em cena, preferimos apagar a luz do palco.
Para ser efetiva, a proteção internacional dos direitos humanos precisa do olhar vigilante, da ação ruidosa, às vezes equivocada, mas sempre indispensável, de ONGs ligadas ao tema. Não é preciso idealizar o que seja esse embrião de uma sociedade civil internacional para reconhecer sua importância, tanto mais agora que países com regimes autoritários e repressivos ganham peso na balança de poder global. Estaríamos querendo nos proteger desse olhar para mais livremente manejar nossos interesses econômicos e nossa projeção de poder na nova ordem multipolar?
A visão de mundo expressa por Samuel Pinheiro Guimarães é compartilhada por grande parte das forças políticas de sustentação do atual governo. Comunga o PT o diagnóstico de que a defesa dos direitos humanos é parte da hegemonia norte-americana. O antiamericanismo é um elemento de coesão no campo das esquerdas menos ou não-democráticas, sobretudo na América Latina, onde o partido construiu uma ampla rede de alianças. Serve para defender as violações dos direitos humanos em Cuba e para justificar Chávez e o chavismo. Explica também certa simpatia por grupos como o Hezbollah e o Hamas e a complacência com Ahmadinejad.
Tem razão quem diz que os Estados Unidos não nos devem servir de modelo. Em muitas ocasiões, desde que se tornou uma potência econômica e militar, a atuação externa desse país conflitou com os valores democráticos que professa. A questão, porém, não se resume a questionar as credenciais dos Estados Unidos. O fato de tais credenciais serem questionáveis não nos libera de responder à pergunta e prestar contas sobre o lugar que valores fundamentais como a defesa dos direitos humanos terão em nossa política externa, agora que projetamos nossos interesses e nossas aspirações de poder em escala global.
Será que para sermos gigantes precisamos apequenar-nos na sustentação de valores que devem marcar a nossa identidade internacional?
DIRETOR EXECUTIVO DO iFHC, É MEMBRO DO GACINT-USP.
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