Blog do Roberto Ellery, domingo 17 de agosto de 2014
Apesar dos esforços na direção de uma teoria unificadora a abordagem padrão de macroeconomia nos força a pensar em termos de curto prazo e longo prazo. O desafio de longo prazo é fazer com que renda per capita do país aumente, mais recentemente a distribuição de renda e a redução da pobreza se juntaram ao desafio do longo prazo. No curto prazo o desafio é manter o nível e emprego sem criar desequilíbrios que venham a gerar problemas nas contas públicas e/ou na inflação. Boa parte do meu interesse enquanto economista está na macroeconomia de longo prazo, mas é inevitável abordar temas relativos ao curto prazo. Até porque as dinâmicas de curto e longo prazo não são apartadas, se na ânsia de evitar o desemprego um governo coloca a economia em uma trajetória de inflação e descontrole fiscal é quase certo que isto levará a problemas no longo prazo. A experiência brasileira a partir de meados da década de 1970 e a crise da década de 1980 ilustram bem como medidas ruins de curto prazo podem comprometer o longo prazo.
No que tange ao longo prazo o Brasil conseguiu reduzir a desigualdade e a pobreza, ainda não encontramos o caminho para o crescimento sustentado no longo prazo. Mas no momento é o curto prazo que me preocupa. Durante aproximadamente dez anos parecia que tínhamos encontrado a receita de como administrar o curto prazo de forma que pudéssemos voltar às atenções para o longo prazo. Porém em 2011 a presidente Dilma resolveu trocar a receita que vinha dando certo. Os objetivos anunciados para justificar a troca de receita não foram alcançados. A promessa que a troca de receita aumentaria a taxa de investimento e aumentaria a participação da indústria no PIB não foi cumprida, pelo contrário, tanto a taxa de investimento quanto a participação da indústria no PIB estão menor do que estavam em 2010. Como desgraça pouca é bobagem a inflação está maior, o governo está gastando mais com serviço da dívida pública, o saldo negativo em transações correntes está crescendo perigosamente e a taxa de desemprego está se sustentando pela saída de pessoas da força de trabalho e não pela geração de empregos. Como tanta coisa pode ter dado errado?
Para responder é preciso falar mais a respeito da antiga receita, conhecida como tripé macroeconômico. A estabilização da economia em 1994 encerou um longo período de hiperinflação, mas deixou um problema nas mãos do governo: como financiar os gastos públicos. A Constituição de 1988 criou uma série de novas responsabilidades para o governo e era necessário financiar essas responsabilidades sem recorrer ao financiamento inflacionário. Como o aumento da carga tributária não foi suficiente para financiar os novos gastos a saída foi recorrer ao endividamento. O problema é que dívida tem custo e para financiar este custo é preciso se endividar ainda mais. Tudo ficou ainda mais complicado porque o Plano Real previa que o câmbio ficasse preso em um determinado intervalo, era o chamado regime de bandas cambiais, e o governo começou a ter de elevar juros para atrair capital do resto do mundo e assim não permitir que o câmbio saísse do intervalo proposto. A combinação foi explosiva, em 1999 o serviço da divida pública chegou a 10,4% do PIB.
Era preciso encontrar uma maneira de desatrelar o real do dólar de forma que a taxa de juros não mais fosse determinada para manter uma dada taxa de câmbio, o risco era que sem o dólar segurando o real a inflação voltasse. A saída foi o que chamamos de tripé macroeconômico. A primeira perna do tripé era a taxa de câmbio flutuante, com isso o BC não mais precisaria elevar os juros toda vez que houvesse uma pressão para desvalorizar o real. A segunda perna do tripé consistia na exigência de uma disciplina fiscal capaz de reduzir o custo com os serviços da dívida, o meio encontrado foram os famosos superávits primários. Mas e a inflação? Resolver o problema do custo da dívida e do câmbio permitindo o descontrole da inflação levaria o Brasil de volta a 1993 e tornaria inútil todos os sacrifícios de 1994 a 1998. A saída foi a terceira perna do tripé, a parte mais complexa da receita. O Banco Central, presidido por Armínio Fraga, adotou a política de metas para inflação. Tal política decorria de avanços recentes na macroeconomia e não tinha sido muito testadas em outros países. Como era muito importante manter a confiança no real para evitar a volta inflação adotamos uma versão bem estrita do regime de metas: a única meta do BC era a de inflação, ou seja, o BC não estaria “preocupado” com emprego ou com crescimento e o período de convergência para meta foi fixado como 12 meses.
A figura abaixo ilustra a história que contei e como o tripé mudou os rumos da economia. De 10,4% do PIB em 1999, ano que o tripé foi adotado, o serviço da dívida caiu para 2,2% do PIB em 2010, último ano do tripé. Em março de 2014, quatro após o abandono do tripé, o serviço da dívida já tinha subido para 3,4% do PIB. A história pode ser contada por outras variáveis, o leitor do blog já viu a história sendo contada por meio dos descompassos entre oferta e demanda (link aqui) e várias vezes por meio da inflação. Voltemos então à pergunta: como tanto coisa pode ter dado errado? A resposta é simples: tanta coisa deu errado por termos destruído tudo que impedia tantas coisas de dar errado.
Primeiro veio o abandono da segunda perna, a dos superávits primários grandes o suficiente para estabilizar a dívida pública. Esta perna foi abandonada já em 2008 por conta da crise financeira. Se é ou não é adequado usar política fiscal para reduzir os efeitos de uma crise é uma questão que divide macroeconomistas e que não vou explorar aqui, porém insistir na política fiscal mesmo após a estabilização do emprego é uma estratégia que poucos macroeconomistas recomendaria, estou sendo generoso. Depois caiu a primeira perna, o regime de câmbio flutuante. O governo Dilma comprou a tese que o câmbio deve ser o que equilibra a indústria, mais uma invenção de economistas que (quase) ninguém consegue sequer calcular, e iniciou uma política de desvalorização do real. Quando a inflação começou a incomodar o governo tentou reverter a política e agora o BC está gastando dinheiro do contribuinte para impedir que o câmbio desvalorize ainda mais. A verdade é que o câmbio foi de R$ 1,60 para R$ 2,40 sem entregar nada do que havia sido prometido em caso de desvalorização cambial. O governo Dilma também abandonou o regime de metas de inflação, pelo menos o regime tal como estabelecido no Brasil. Mas a inflação não ficou dentro da meta em todo o governo Dilma? Sim. Mas esta não é a questão. O regime de metas é um compromisso entre a sociedade e o BC que determina que este último fará tudo que está a seu alcance para que a inflação fique no centro da meta, no Brasil o valor é de 4,5%. Se a inflação fica dentro do intervalo das metas porque o governo está intervindo diretamente nos preços, porque a providência assim desejou ou por qualquer outra razão que não esteja relacionada à ação do BC então não estamos em um regime de metas. Por exemplo, a inflação nos EUA flutuou em torno de 3% ao ano desde meados da década de 1980, mas o FED não trabalha com um regime de metas explícitas no estilo de nosso BC. Claro está que o regime de metas não é a única, talvez nem mesmo a melhor, forma de manter a inflação sobre controle, é legitimo o BC abandonar o regime, o que não é legitimo é não avisar que abandonou.
Ao tirar as duas pernas restantes do tripé a política econômica do governo Dilma permitiu a queda da estabilidade de curto prazo que o tripé segurava. A Nova Matriz Macroeconômica, que é tão nova quanto assistir Kojak ou ouvir Black Sabath, ao não providenciar nada que pudesse sustentar a estabilidade conquistada nos anos 1990 levou a política econômica de Dilma a um labirinto. O resultado é que voltamos a discutir inflação, dívida, confiança de investidores e todos aqueles temas de curto prazo que pareciam já estar resolvidos. Infelizmente a discussão a respeito do longo prazo voltou para geladeira.