A diplomacia profissional e a engajada - Paulo Roberto de Almeida
Diplomacia e Relações Internacionais

A diplomacia profissional e a engajada - Paulo Roberto de Almeida



A diplomacia profissional e a engajada: minha experiência pessoal

Paulo Roberto de Almeida

            Sempre refletindo alguns dos temas do meu livro recentemente publicado Nunca Antes na Diplomacia (ver neste link: http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/NuncaAntes2014.html), trato aqui de um dos maiores problemas "existenciais" que possam existir na carreira de um diplomata, ou seja, a de ser obrigado a cumprir instruções com as quais ele possa estar em profundo desacordo, tanto por razões políticas quanto de ordem moral. Sei o que é isso, por ter enfrentado o mesmo dilema durante meus primeiros anos de carreira, quando era servidor do Estado, sob o governo militar, contra o qual eu estava em profundo desacordo, tanto que o combati, e por isso enfrentei um exílio de sete anos e meio.

Trata-se de uma das questões mais complicadas que possam existir em instituições de Estado, mas que respondem a ordens de governo, e uma das mais difíceis para o profissional isento, que costuma ter uma visão suprapartidária dos negócios do Estado, o que pode ocorrer com muita frequência na área econômica, em geral, mas também na diplomacia, como parece ser o meu caso.
Eu ingressei no Itamaraty em plena ditadura militar, em 1977. Aliás, estava prestando um dos exames de ingresso no próprio dia, 12 de outubro, quando o ministro do Exército, general Sílvio Frota, parecia estar empreendendo um golpe interno contra o presidente de então, general Ernesto Geisel, por julgar que este tinha sido muito ousado, justamente, na sua política externa, considerada muito terceiro-mundista e de apoio aos comunistas, tendo antes reconhecido os regimes e estabelecido relações diplomáticas com a China então comunista, com o governo pró soviético de Angola, e coisas do gênero. O general Sílvio Frota considerava o Itamaraty muito esquerdista, no que talvez ele tivesse razão. Mas a política externa era a do presidente Geisel, não a do Itamaraty, que podia até concordar, ou não, com essa política, mas não tomaria essas iniciativas se não tivesse sido autorizado, instruído e ordenado fazê-las, o que de certo modo causou comoção em certos meios militares de direita (em alguns grande jornais conservadores também). Em algum momento, Brasil e Cuba estavam na prática juntos em apoio ao governo de Luanda, que lutava contra dois grupos guerrilheiros, um deles apoiado, contraditoriamente, pelos chineses e pelos americanos, ao mesmo tempo. São as surpresas e as contradições da vida, ou das relações internacionais.
Pois bem, eu entrei num Itamaraty que aparentemente estava sob a tutela do regime militar – e de fato havia vários assuntos tabu, como a própria Cuba, a União Soviética, e os países socialistas em geral – mas nunca me senti tão livre na profissão como naqueles tempos de aparente tutela militar sobre a nossa corporação. Salvo esses poucos assuntos, o Itamaraty tinha total autonomia para conduzir seus assuntos diplomáticos, com perfeita observância dos preceitos constitucionais e liberdade operacional. Tínhamos, por exemplo, de consultar a secretaria do Conselho de Segurança Nacional para conceder vistos para cidadãos e funcionários dos governos socialistas, mas no resto tínhamos muita autonomia de ação. E estou falando de um tempo em que eu ainda assinava artigos políticos com pseudônimo, justamente porque vivíamos sob um regime autoritário de direita. Mas esse é um aspecto que jamais interferiu na minha atividade propriamente diplomática, que se desenvolvia em consonância com o que se imagina serem os interesses nacionais. Dou exemplos.
Qualquer decisão, no relacionamento externo do país, era objeto de extensas consultas internas – lembro de memorandos com mais de 30 páginas, com pareceres de todas as áreas, política, econômica, jurídica, etc. – e depois ainda se convocavam reuniões de coordenação com outros órgãos – Fazenda, Banco Central, Planejamento, Agricultura, etc. – para extrair os elementos do processo decisório que contemplassem um amplo espectro de opiniões e fundamentos no próprio governo. Não raro se consultavam as associações de classe – em negociações comerciais externas, por exemplo – para saber o impacto de tais e tais acordos em nossa economia ou sistema jurídico. Também me lembro de exposições de motivos ao presidente da República, algumas vezes assinadas por dois ministros de Estado, que levavam a decisão última ao máximo responsável. Também era muito frequentes as “Informações ao Presidente”, que o ministro levava ao presidente em seus despachos, para que este apusesse sua assinatura na, ou numa das opções de ação apresentadas pelo Itamaraty. Vi muito desses papéis com a rubrica ou a assinatura do Geisel, do Figueiredo, depois do Sarney, do Collor, do Itamar e de FHC. Os arquivos do Itamaraty abundam nesse tipo de registro objetivo, factual, preciso, sobre como certas decisões foram tomadas, e se aprofundarmos a pesquisa ao nível dos memorandos ou das notas técnicas que fundamentaram cada uma dessas informações ou exposições de motivos, saberemos exatamente como cada decisão foi tomada, por quem e sob quais argumentos.
Esta é a diplomacia profissional à qual eu me refiro. Posso estar enganado, mas muitas das decisões tomadas nos anos do lulo-petismo carecem do mesmo grau de formalização quanto ao processo decisório, e muitas podem até carecer de registros apropriados, sem mencionar o aspecto deletério já referido da interferência partidária em assuntos que deveria merecer um exame técnico, isento, por parte dos diversos setores do Estado brasileiro e até de representantes da chamada sociedade civil. O diplomata, ou o funcionário de qualquer outra área do Estado, que tem inevitavelmente de servir ao governo de turno, percebe imediatamente quando os parâmetros, os métodos e os procedimentos profissionais estão sendo seguidos, ou quando existe uma clara ruptura nesses padrões de funcionamento do Estado. Creio que esse é o principal motivo de angústia para muitos dos meus colegas diplomatas, como para mim mesmo.


Paulo Roberto de Almeida
Hartford, 20 de agosto de 2014



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