Diplomacia e Relações Internacionais
Diplomacia e Política Externa: quão diferentes? - Paulo Roberto de Almeida
Quais as relações entre a diplomacia e a política externa?
Paulo Roberto de Almeida
Aproveito a publicação de meu livro Nunca Antes na Diplomacia - A Política Externa Brasileira em Tempos Não Convencionais (link: http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/NuncaAntes2014.html), para comentar sobre alguns dos temas ali presentes.
Comento, em primeiro lugar, sobre a superposição que se faz frequentemente entre diplomacia e política exerna, e, adicionalmente, sobre as orientações mais liberais ou menos liberais, de uma política econômica interna e externa.
Duas distinções são necessárias aqui: a primeira, entre a diplomacia estrito senso, por um lado, e a política externa, em seu sentido mais lato, por outro lado; a segunda distinção importante a ser feita, seria entre uma diplomacia que seria mais liberal, de uma parte, e uma outra que seria menos liberal, de outra, cada caso a depender do governo ou de alguma necessidade circunstancial. Existem aqui dois pequenos problemas, que são muitas vezes do público em geral, sobre o que se entende que seja a diplomacia, e sobre o que é política externa de um país.
Em meu livro, cujo título completo é, Nunca Antes na Diplomacia...: a política externa brasileira em tempos não convencionais, eu não faço tanto uma análise crítica da atuação do Itamaraty enquanto tal, ou seja, de nossa diplomacia, quanto sim, eu faço uma avaliação muito realista da política externa brasileira, tal como efetivamente conduzida na era do lulo-petismo. Talvez a junção dos dois conceitos no título do livro possa se prestar a essa confusão, que eu pretendo agora esclarecer.
A diplomacia, no sentido estrito da palavra, é uma mera técnica, ou seja, um dos instrumentos, ou ferramentas, usados por qualquer Estado organizado, para conduzir seus assuntos externos, suas relações com os demais países, sua presença nas organizações internacionais. Todos os Estados modernos possuem esse tipo de ferramenta, independentemente da natureza desse Estado – se democracias, se regimes autoritários, até mesmo se perfeitas tiranias – e independentemente do conteúdo de sua política externa. Esta pode ser mais tradicional, pautando-se pelas regras do direito internacional, ou talvez um pouco mais agressiva, mobilizando outros fatores de poder ou de projeção externa, como podem ser as forças armadas, ou até mesmo as empresas de maior capacidade de penetração internacional. Filmes de Hollywood podem ser uma forma de fazer política externa, utilizando, digamos assim, uma forma não muito usual de diplomacia. Projetar bases militares ao redor do mundo, também pode ser uma forma, embora heterodoxa, de fazer diplomacia, que seria, digamos, a ameaça velada como forma de persuasão.
Mas a diplomacia é uma técnica que tem suas regras e rituais, independentemente do seu conteúdo intrínseco. Na sua forma moderna, a de embaixadas permanentes e de organismos especializados, ela começou a tomar forma no Congresso de Viena, em 1815, e foi sendo aperfeiçoada, institucionalizada e organizada em função de alguns grandes acordos internacionais, que surgiram ao cabo de guerras globais – como a Liga das Nações, no final da Primeira Guerra Mundial, por exemplo, ou a ONU, na conferência de São Francisco, ao final da guerra de 1939-1945 – ou que foram o resultado de conferências diplomáticas que codificaram algumas regras das relações diplomáticas. Temos, a esse respeito, a Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, de 1961, que institucionaliza a forma pela qual os estados se reconhecem, se relacionam, trocam representantes, protegem esses representantes por meio de imunidades diplomáticas, e até regulam o rompimento dessas relações ou a denúncia de tratados bilaterais ou multilaterais e a retirada de Estados desses acordos ou organizações. Ou seja, tudo isso é pura técnica, e nada diz sobre o conteúdo da diplomacia, ou mais exatamente, sobre a natureza da política externa que é conduzida por cada Estado.
A política externa, esta sim, depende de cada Estado especificamente, e pode ser tão diferente entre dois Estados como é a conduta de um governo na frente interna, segundo ele seja plenamente democrático, ou uma perfeita tirania. Cada um deles usará a diplomacia de que dispõe para impulsionar seus interesses nacionais na frente interna e na frente externa. A política externa é a que dá substância ou conteúdo à diplomacia, que de outra forma permaneceria uma mera troca burocrática de expedientes – notas, comunicados, projetos de acordos – ou de representantes oficiais. É a política externa que determina como um governo, ou um Estado vai se relacionar no plano internacional, sendo mais ou menos cooperativo, ou mais agressivo, digamos, como também ocorre algumas vezes. Já vimos Estados invadindo outros, ou provocando uma guerra, por razões de fronteiras, ou qualquer outro motivo de conflito militar. Nesses casos, a diplomacia entra em campo para fazer o que sempre faz: tentar resolver disputas por meios pacíficos e apelando para tratados e organizações internacionais.
Em meu livro, portanto, eu não critico o Itamaraty, enquanto diplomacia, embora ele possa ter tido um maior ou menor engajamento com a política externa do governo, mas faço uma avaliação da política externa conduzida nos últimos anos, que pode não ter sido elaborada no Itamaraty, nem pelo Itamaraty, ou sequer conduzida por ele. Como sabemos, grande parte das iniciativas da era lulo-petista na frente externa foram concebidas e aplicadas a partir da própria presidência da República, o que pode até ser legítimo, uma vez que, num regime presidencial como o nosso, a política externa é a determinada pelo presidente da República, que pode, ou não, utilizar a diplomacia para suas finalidades pessoais. Como sabemos, muitas decisões ou iniciativas foram tomadas no próprio Palácio do Planalto, que possui um assessor presidencial para assuntos internacionais que é militante do partido, não integrante dos quadros diplomáticos como costumava ser anteriormente.
Indo agora para a segunda distinção, não se pode exatamente dizer que uma diplomacia seja mais liberal do que outra, uma vez que a mesma ferramenta pode ser utilizada para fins muito distintos, dependendo da natureza e das orientações de um governo, de um regime, de um Estado. O que as diferencia são os métodos empregados e o conteúdo das políticas impulsionadas. Democracias liberais de mercado tenderão naturalmente a promover acordos consensuais para alcançar seus objetivos típicos: abertura do maior número de países ao comércio e aos investimentos diretos, cooperação em bases voluntárias, respeitando a soberania de cada Estado, abstenção de recurso a meios militares ou a ameaças diretas para dirimir disputas ou resolver conflitos. Tiranias podem ser imprevisíveis, pois tanto podem conduzir uma diplomacia “pacífica”, digamos assim, reservando a repressão para o seu próprio povo, como impulsionar ações unilaterais, agressivas, no plano externo, desprezando tratados firmados ou a existência de organizações dedicadas à paz e à cooperação.
Democracias liberais são relativamente transparentes ao escrutínio público sobre suas políticas, inclusive a externa, com amplos debates no parlamento, na imprensa, entre a opinião pública, com os encarregados da diplomacia serem frequentemente convidados a se explicar, perante os legisladores, ou na imprensa, sobre o sentido e a direção que eles estão imprimindo à diplomacia e à política externa. Regimes autoritários são bem mais fechados, e esse tipo de debate raramente ocorre, e não porque a diplomacia seja mais liberal ou menos liberal, mas porque o próprio regime atua de forma antiliberal, ou seja, de modo autoritário, sem os famosos contrapesos dos regimes democráticos, sem a transparência existente nesse regimes.
Concluindo sua pergunta, eu diria: a diplomacia profissional brasileira sempre atuou do mesmo modo, em situações democráticas, ou sob o regime autoritário, digamos o período militar dos anos 1960 ou 1970, quando a preocupação dos dirigentes estava voltada para os cenários típicos da Guerra Fria: a luta contra o comunismo e contra os regimes esquerdistas na América Latina. O conteúdo da política externa é que mudou, e as orientações eram no sentido de impulsionar aqueles objetivos dos militares. Provavelmente, naquele período, a diplomacia brasileira tenha protagonizado episódios pouco gloriosos de sua história, no sentido de conduzir ações incompatíveis com os seus princípios tradicionais, que são os da absoluta neutralidade política e o da não intervenção nos assuntos internos de outros Estados. Podem ser identificados esses episódios nos casos de ameaças esquerdistas, ou vistas como tal pelos militares, em governos vizinhos, de países como Uruguai, Bolívia ou Chile (sob Allende, por exemplo).
Mais recentemente podem ter ocorrido episódios semelhantes, mas em favor de regimes ditos progressistas na América Latina, como são os chamados bolivarianos, na mesma Bolívia, na Venezuela, ou no caso do regime comunista de Cuba. Digo podem ter ocorrido porque não há um registro perfeito de determinados episódios, uma vez que alguns deles, justamente, não foram conduzidos pela diplomacia profissional, e podem não ter deixado um registro sobre foram conduzidas determinadas ações. Imagino, por exemplo, que até hoje o Congresso brasileiro não tenha uma ideia precisa de como foi conduzido o programa Mais Médicos, com seu número extraordinariamente elevado de pessoal cubano – muitos deles de qualificação duvidosa – uma vez que faltam informações adequadas sobre a negociação e sobretudo sobre os compromissos financeiros contraídos ao abrigo desse programa; o Itamaraty, provavelmente, não foi o responsável pela sua tramitação. Trata-se ai de um nítido exemplo de política externa que pode ter sido subtraído aos canais habituais da diplomacia.
Paulo Roberto de Almeida
Hartford, 20 de agosto de 2014
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