O Brasil no Haiti: uma visao pessoal - PRA, 2011
Diplomacia e Relações Internacionais

O Brasil no Haiti: uma visao pessoal - PRA, 2011



A política externa brasileira para o Haiti e a Minustah

Paulo Roberto de Almeida
Respostas a questões colocadas por pesquisador
da Universidade de Palermo, Argentina

1. Quando o Brasil começou a participar militarmente da missão de paz no Haiti, tanto o presidente Lula como seu ministro, Celso Amorim, utilizaram em seus discursos a palavra "solidariedade" para justificar a intervenção no Haiti. Você acha que a participação brasileira na MINUSTAH acontece sem outros interesses?
PRA: A palavra “solidariedade”, ou quaisquer outras justificativas usadas pelo governo brasileiro em conexão com a decisão brasileira de liderar a missão da ONU no Haiti, configura uma racionalização a posterioride uma decisão essencialmente política, adotada pela cúpula do governo Lula desde 2004, em função de outros interesses mais concretos do que a simples “solidariedade” com o Haiti. Essa participação foi vista, em primeiro lugar, como uma oportunidade para o Brasil realçar seu status internacional, sua imagem externa, como parte de um projeto de projeção internacional do Brasil, com vistas ao objetivo mais relevante (para seus promotores) da aceitação do Brasil como um novo membro permanente do Conselho de Segurança das NU, no caso de reforma da Carta da ONU e ampliação do CSNU. Obviamente fica mais ‘palatável’ e mais aceitável usar a justificativa da “solidariedade” com o povo haitiano do que expressar claramente o desejo de ser aceito como candidato “natural” ao CSNU.
Por outro lado, não se pode dizer que “o Brasil”, ou seja, o país decidiu participar ou enviar tropas, pois a ideia jamais foi discutida previamente com a sociedade brasileira ou negociada com o Congresso, mas adotada como decisão executiva e depois comunicada ao Congresso (que precisa aprovar o envio de tropas ao exterior). A decisão sequer foi tomada pelo Itamaraty, ou seja, pelo corpo profissional de diplomatas, e sim pela alta cúpula do governo, pelo próprio presidente e assessores mais chegados, entre eles ministros do Palácio do Planalto, o assessor presidencial para assuntos internacionais e, obviamente, o chanceler, o mais diretamente interessado na elevação do status do Brasil ao papel de membro permanente do CSNU. Trata-se, portanto, de uma decisão tomada por um círculo restrito de pessoas, algumas pertencentes aos establishments diplomático e militar, outras à cúpula do partido governamental (PT), mas sempre como decisão pessoal, e voluntarista, jamais como o resultado de uma avaliação cuidadosa das implicações do gesto ou como adesão obtida ao longo de um processo de discussão em círculos mais amplos da sociedade. Não se conhece nenhum estudo prévio colocando o problema e discutindo custos e consequências, mas obviamente ocorreram trabalhos preliminares, sobretudo no âmbito militar, examinando os requerimentos dessa participação, mas apenas depois que a decisão já tinha sido tomada.

2. Alguns acadêmicos consideram que a participação brasileira no Haiti está motivada por uma série de benefícios, que vão do militar até o político. Você crê que o Brasil obtém "ganancias" por participar na missão no Haiti? Sendo assim, quais seriam estas?
PRA: Certamente, e o realce da imagem do país na comunidade internacional é apenas mais um desses ganhos concretos. Este era um dos objetivos que motivaram a decisão; pode-se, assim, dizer que os resultados foram os esperados. Existem vários outros benefícios dessa participação, que não é de todo inédita (já que o Brasil tem um histórico de participações em missões de manutenção da paz da ONU), mas jamais nessa escala, com essa amplitude, em tamanha situação de responsabilidade política.
Um dos benefícios diretos – e mesmo indiretos – é a experiência adquirida, tanto no plano diplomático, como propriamente militar, advinda de uma presença tão importante quanto a engajada na missão do Haiti, em volume de homens, recursos, esforços de coordenação nos planos bilateral, regional e multilateral, etc. Os militares provavelmente ganharam mais experiência até do que os diplomatas, que assistem a esse tipo de debate nas comissões da ONU de modo mais ou menos contínuo. Ainda que o terreno seja relativamente limitado à situação de miséria, de ausência de infraestrutura material e até ausência de governança no seu estado mais simples (que seria a existência de forças precárias de segurança no terreno, existindo, além disso completa ausência de meios materiais, de energia ou de quaisquer outros atributos elementares de um Estado “normal”), a confrontação de militares e funcionários civis do Brasil a tais tarefas de “nation building” constitui um “benefício” importante da participação.
Num outro plano, pode-se dizer que outros setores da sociedade brasileira podem também ser beneficiados, como, por exemplo, os cidadãos engajados em cooperação internacional e, mais importante, os fornecedores de bens e equipamentos que foram adquiridos pelas forças brasileiras e que, eventualmente, serão usados posteriormente pelos atuais beneficiários da ação brasileira. Não se pode, com efeito, eludir o fato de que a participação implica a aquisição de volumes expressivos de materiais, comida, equipamentos diversos, vindos de empresários e prestadores brasileiros. Mesmo que grande parte disso seja usada pelas próprias forças brasileiras e não pelo povo haitiano, existem benefícios retirados desse tipo de “compra governamental”.
Quando se fala em benefícios, uma análise econômica elementar não pode deixar de falar também em custos, ou efeitos menos positivos de qualquer tipo de ação. Existem custos diretos e indiretos, entre os quais, os mais importantes são obviamente os financeiros. A despeito de ser uma missão da ONU, ou seja, financiada multilateralmente, não resta dúvida que o Brasil, e o orçamento do Exército (e do Ministério da Defesa), arcam com boa parte dos custos e gastos não cobertos inteiramente pela ONU. Tanto é assim que o próprio chanceler responsável pela decisão da presença brasileira no Haiti, Celso Amorim, passou a pregar, uma vez feito ministro da Defesa, já no presente governo Dilma Rousseff, a retirada do Brasil. Interpreto isso como simples pressão orçamentária, pois recursos devem estar faltando para as FFAA no próprio Brasil.
Existem os custos gerais para a sociedade brasileira, pois os recursos retirados dos orçamentos militares têm de vir de impostos e despesas que de outra forma seriam dirigidos a prioridades internas do país, entre elas a redução da pobreza no próprio Brasil, um país que não é tão pobre quanto o Haiti – de longe e há muito tempo um Estado falido e completamente incapaz de cuidar do seu próprio povo – mas que tem muito mais pobres, numericamente falando, do que toda a população do Haiti. Existem custos políticos, também, e não são apenas os da oposição de esquerda – latino-americana e de outros países – a uma operação identificada a uma “invasão imperialista”, mas de vários outros setores que acham que o Haiti está sendo “controlado” pelos EUA, França e, agora, com a conivência do Brasil, e que o objetivo de toda essa operação de pacificação se destina a impedir uma massa de haitianos de emigrar para outros lugares.

3. Segundo você, qual é a relação que existe entre a participação brasileira na MINUSTAH e a obtenção de um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU?
PRA: A relação, do meu ponto de vista, é total e direta: a decisão de mandar tropas foi tomada pensando claramente em que essa presença representaria algo como um “bilhete de ingresso” no CSNU. Pode ter sido um cálculo mal feito, e ingênuo, mas a conexão entre a presença e o processo de reforma da Carta da ONU existia claramente na mente dos decisores governamentais. Talvez se considere que, mesmo que a reforma não tenha ocorrido agora, o fato dessa presença já coloca o Brasil na condição de um dos candidatos ‘naturais’ ao CSNU, junto com Japão, Alemanha e Índia, por acaso os países do G4, com os quais o Brasil se coordena para fins de reforma da Carta da ONU.

4. Setores acadêmicos criticaram o governo brasileiro por violar o princípio de não-intervenção em assuntos de terceiros estados, inscritos no artigo número quatro da Constituição Nacional Brasileira. Você crê que essa crítica é válida?
PRA: O Brasil, ou melhor, o governo brasileiro certamente violou esse princípio, e de modo explícito, várias vezes durante a presidência Lula, mas provavelmente não em relação ao Haiti, que enfrentava uma situação de caos, de quase falência total do Estado e do governo legal (de Jean-Bertrand Aristide), quando se decidiu tal ação no âmbito do CSNU. Pode até ser que o Conselho devesse ter tentado primeiro trabalhar com o presidente legítimo, antes de afastá-lo do poder, mas o fato é que ele era uma das fontes de instabilidade, ao atuar de modo claramente sectário no conflito com forças de oposição. O cenário no Haiti era de quase caos total, e de muitas mortes provocadas na população civil inocente, à margem dos enfrentamentos entre forças legalistas e apoiadores de gangues armadas de oposição ao presidente. O fato é que o governo de Jean-Bertrand Aristide já não conseguia assegurar condições mínimas de segurança para a população, e por isso mesmo se houve violação do mesmo princípio no plano multilateral, tal intervenção se deu em benefício do povo haitiano, não em contraposição a seus interesses de segurança.
O Brasil, ou o presidente Lula e membros do seu governo violaram várias vezes o princípio constitucional da não-intervenção ao terem proclamado várias vezes sua simpatia e total apoio político a candidatos presidenciais em pleitos de países vizinhos, em ruptura com velhas tradições diplomáticas brasileiras de não se pronunciar nesse tipo de evento. A preferência por determinados candidatos foi manifestada de forma aberta, clara e explicitada por razões políticas e ideológicas (por serem os candidatos líderes de esquerda, personalidades progressistas ou simplesmente por serem considerados aliados do governo do Brasil num determinado contexto político). Isso ocorreu em diversas e repetidas ocasiões em relação a pleitos presidenciais na Argentina, na Bolívia, no Equador, no Peru, na Venezuela e em várias outras ocasiões e oportunidades, inclusive mais de uma vez.
A mais grave infração ao princípio constitucional – e também a tratados em vigor dos quais o Brasil é parte – ocorreu, porém, no caso de Honduras, onde o governo do Brasil, mais especificamente de Lula, patrocinou um espetáculo de instabilidade política incompatível com as tradições diplomáticas e jurídicas do país. Um parlamento atuante em uma democracia funcional poderia até ter processado o presidente por crime de responsabilidade política, ou convocado o chanceler para explicações cabais quanto aos motivos para o descumprimento do preceito constitucional da não-intervenção. A crítica, portanto, não apenas é válida, como está demonstrada concretamente em diversos exemplos como os mencionados acima (e provavelmente vários outros menos conhecidos, sempre em conexão com vínculos partidários do PT, em total contradição com obrigações constitucionais e princípios diplomáticos do Brasil).

5. Você considera que, tanto o presidente Lula, como o Ministério de Relações Exteriores do Brasil, usaram o novo conceito de "não-indiferença" para legitimar a intervenção no Haiti?
PRA: O conceito de “não-indiferença” foi expressamente construído, não pelo Ministério das Relações Exteriores, mas pelo ministro pessoalmente, para “explicar”, a posteriori, ou para justificar, o envolvimento do Brasil numa série de iniciativas que visavam justamente realçar a posição do Brasil no cenário internacional, na ausência de maiores motivos válidos ou legitimadores dessas iniciativas. Tenta-se validar essa noção, como parte da “responsabilidade” do Brasil em face de problemas em determinados países, mas o fato é que o Brasil poderia ter atuado por meio da ONU, ou de outros órgãos intergovernamentais, quando ele preferiu atuar sozinho, para construir essa imagem de país participante e interessado na resolução de problemas em vizinhos ou em conexão com eventos fortuitos em lugares distantes. Em relação especificamente ao Haiti, certamente não havia qualquer sombra desse conceito no momento em que se tomou a decisão, adotada às pressas e de modo algo improvisado. Ela não serviu, portanto, para legitimar essa “intervenção”, senão muito a posteriori, quando a presença já era um fato consumado.
Paulo Roberto de Almeida (Brasília, 3/11/2011)



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