Venezuela-Brasil: uma relacao complicada (para dizer o minimo) - Leandro Loyola (Epoca)
Diplomacia e Relações Internacionais

Venezuela-Brasil: uma relacao complicada (para dizer o minimo) - Leandro Loyola (Epoca)


Tolerância com o atraso venezuelano
Desastre no comércio bilateral e motivo de constrangimento no cenário internacional. Assim é a parceria do Brasil com a Venezuela
LEANDRO LOYOLA

Revista Época, 07/03/2014

O governo brasileiro tem um histórico de tolerância em relação ao atraso da Venezuela. Quando vinha ao Brasil, Hugo Chávez nunca avisava a que horas chegaria, desrespeitando uma tradição da boa diplomacia: um país sempre avisa sobre o horário em que o avião com seu chefe de Estado passará pelo espaço aéreo do outro. Os venezuelanos, ao contrário, nunca determinavam um período exato – apenas um longo intervalo de horas. Seu
sucessor,Nicolás Maduro, o professor Girafales da Venezuela, não mimetiza apenas os longos discursos que Chávez adorava. Ele também reserva longos horários quando vem ao Brasil, de modo que nunca se sabe a hora exata que chegará. O Brasil continua sem saber quanto esperará a Venezuela. Mas tolera seu atraso.
E o tolera num constrangedor silêncio. É um mutismo que revela a dificuldade – ou a deliberada resistência – do governo Dilma em pôr o Brasil na liderança geopolítica e econômica da América Latina, contribuindo para o avanço democrático nos países vizinhos.
Nada seria mais natural. Nas últimas semanas, enquanto o pau cantava nas ruas de Caracas, o Palácio do Planalto a tudo observou em silêncio, como se temesse melindrar os colegas chavistas. Estivesse o governo Maduro à direita de suas preferências ideológicas, teriam Dilma e o Itamaraty observado o mesmo obsequioso cuidado? Até a União Europeia pediu equilíbrio a Maduro e a seus opositores. Ninguém espera ou exige que o Brasil acolha posições golpistas contra Maduro, um presidente eleito pelo voto popular, embora num país que se distancia rapidamente das boas regras da democracia. Mas ficar em silêncio significa tolerar os abusos e a violência praticados pelas forças paramilitares do chavismo e, em menor grau, pela oposição. Não há razão pragmática para adotá-lo. Há apenas razão ideológica.
Do Brasil, não veio um murmúrio de sensatez. Do Mercosul, sob a Presidência temporária da própria Venezuela, veio um grito insensato, em nota que se assemelha às declarações palanqueiras de Maduro e seus apoiadores. “Os Estados do Mercosul”, diz o texto, “reiteram seu firme compromisso com a plena vigência das instituições democráticas e rechaçam as ações criminosas dos grupos violentos que querem disseminar a intolerância e o ódio na República Bolivariana da Venezuela como instrumento da luta política.” O Brasil, integrante do Mercosul, subscreve a nota. O que o Brasil ganha com isso? É difícil dizer. 
Em compensação, o Itamaraty divulgou uma nota sobre a violência e as mortes nos protestos em Kiev. Ucrânia e Venezuela vivem realidades diferentes, mas em ambos os casos os princípios da diplomacia brasileira deveriam ser os mesmos. Estão na Constituição, entre outros: “Prevalência dos direitos humanos” e “solução pacífica dos conflitos”. 
Para assessores próximos de Dilma, ela não falou, nem disse ao Itamaraty que falasse, porque não valeria a pena – não haveria como mudar a Venezuela, esse país eternamente condenado à instabilidade institucional. Parece uma postura pragmática. Talvez seja uma posição cínica, ou confortavelmente derrotista. “O Planalto tem desavenças com o governo Maduro, mas abdicou de jogar duro com ele. Como o assunto é tema de política interna no Brasil – simpatizantes do PT consideram o chavismo um experimento emancipador, e a oposição vê um regime autoritário –, o governo Dilma sente que qualquer crítica ao vizinho seria fazer o jogo dos opositores”, afirma o cientista político Matias Spektor, doutor em relações internacionais e professor da Fundação Getulio Vargas. “O resultado é que Brasília acoberta Caracas mesmo sem querer fazê-lo, e a presidente tem um espaço de manobra reduzido.”
O Brasil sempre demonstrou benevolência com a Venezuela. Em 2005, o então presidenteLuiz Inácio Lula da Silva combinou com Chávez a construção da refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco, a ser tocada por Petrobras e PDVSA. Deu errado. Os venezuelanos deram calote na Petrobras. (Agora exclusivamente brasileira, a Abreu e Lima ainda está em construção, e seu preço passou de R$ 3 bilhões para R$ 19 bilhões.) O Brasil não faltou à Venezuela em momentos constrangedores. Lula não criticou Chávez por nacionalizar empresas estrangeiras, em 2006, nem por tratorar o Congresso para mudar a Constituição e ganhar o direito de disputar a reeleição eternamente, como se fora um ditador africano. Em 2012, o governo Dilma aproveitou um golpe político no Paraguai para suspender o país e forçar a entrada da Venezuela no Mercosul. Foram favores imensos.
Apesar da boa relação, Lula não deixava de discordar de Chávez. “Lula era simpático a Chávez, mas nunca deixou de se fazer ouvir com clareza”, diz Spektor. A relação de Dilma com Maduro não é assim. “Ao Brasil, hoje falta interlocução com Caracas.” 
A preocupação real do governo Dilma é com os reflexos econômicos da crise. O governo brasileiro incentivou empresas a investir na Venezuela. No ano passado, o Brasil exportou US$ 4,9 bilhões para lá – e importou apenas US$ 1,1 bilhão. A Venezuela seria um grande mercado para o Brasil, pois, como não produz quase nada além de petróleo, importa 96% de tudo o que consome. Nos últimos meses, as empresas brasileiras levam uma verdadeira canseira para receber. As indústrias calçadista e têxtil desistiram de exportar. No caso dos têxteis, o volume de exportações, de US$ 90 milhões em 2011, caiu a praticamente zero neste ano. “Demorávamos até dois anos para receber”, afirma Alfredo Bonduki, presidente do Sinditêxtil de São Paulo. É uma aberração. Em negócios com países normais, os exportadores recebem adiantado ou a transação é feita com cartas de crédito emitidas por bancos. Isso não é possível, porque a Venezuela é um país quebrado. O governo controla o câmbio a conta-gotas, para não esgotar suas escassas reservas. As empresas venezuelanas compram das brasileiras, depositam seus bolívares (a moeda local) para a conversão, mas o governo venezuelano não libera os dólares para o pagamento às empresas brasileiras. Esse impasse pode levar meses.
O governo brasileiro teme que as empresas nacionais vendam ainda menos para a Venezuela por causa da crise. É uma péssima situação, especialmente porque se repete com a Argentina, o terceiro maior comprador do Brasil. Assim como a Venezuela, a Argentina tem escassas reservas cambiais. Com dois parceiros do Mercosul em crise, o Brasil sentirá um impacto em sua balança comercial, num ano em que as perspectivas econômicas não são das melhores. Ao demonstrar tolerância com a Venezuela, o Palácio do Planalto terá de torcer para que seu silêncio não fique constrangedor, caso os protestos perdurem ou se agravem. Talvez precise ver mais alguns gestos bolivarianos estranhos à democracia, conversar muito para que pagamentos atrasados sejam liberados e fingir não ligar para a falta de cerimônia em visitas. Mas, como se sabe desde Chávez, ao Brasil não falta tolerância com o atraso da Venezuela.



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