O comunicado final da mais recente reunião de cúpula da União de Nações Sul-Americanas (Unisul) enfatizou o compromisso com "valores comuns como a democracia, o Estado de Direito, respeito absoluto pelos direitos humanos e a consolidação da América do Sul como uma zona de paz". Se é assim, nada justifica a entrega da presidência da Unasul ao Suriname, governado pelo notório Dési Bouterse.
A ficha corrida do presidente surinamês é extensa. Ele foi ditador entre 1980 e 1987, após um sangrento golpe militar, e de 1990 a 1991, também depois de uma quartelada. É acusado de diversas violações de direitos humanos, em especial o assassinato de opositores - no caso mais rumoroso, que gerou protestos no mundo todo, 15 jovens que haviam criticado a ditadura foram torturados e mortos pelos soldados de Bouterse na calada da noite. Em sua defesa, Bouterse diz que não foi ele quem "puxou o gatilho".
Em 2000, o ex-ditador foi condenado in absentia pela Justiça da Holanda a 11 anos de prisão sob acusação de tráfico de cocaína. Telegramas vazados pelo WikiLeaks mostram que Bouterse permaneceu no negócio das drogas pelo menos até 2006, organizando remessas de cocaína colombiana para a Europa, via Brasil, e há relatos de ex-colaboradores segundo os quais ele forneceu armas às Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) em troca de cocaína.
Há uma ordem de prisão contra Bouterse emitida pela Interpol, razão pela qual ele só consegue viajar por lugares que ignoram essa ordem e o reconhecem não como criminoso condenado, mas como chefe de Estado. Bouterse, por exemplo, esteve recentemente no Brasil, como convidado da presidente Dilma Rousseff, para prestigiar a visita do papa Francisco.
O ex-ditador, que nunca deixou de ser a figura mais influente do Suriname, tornou-se presidente em julho de 2010, em eleição indireta - ele foi escolhido pelo Parlamento graças a uma aliança com o partido de Ronnie Brunswijk, que um dia foi o principal inimigo de Bouterse e hoje é o homem mais rico do Suriname. Brunswijk também foi condenado na Holanda por tráfico de drogas.
Uma vez de volta ao poder, Bouterse nomeou o filho, Dino - outro narcotraficante condenado, inclusive no Suriname -, para chefiar a unidade de combate ao terrorismo no país. Dino esteve diversas vezes na Venezuela para apoiar Nicolás Maduro na sucessão do caudilho Hugo Chávez e também para negociar com as Farc a troca de armas por cocaína, segundo o jornal venezuelano El Nacional.
Foi justamente Dino o pivô do maior constrangimento da Unasul até a presente data. Poucas horas antes de seu pai tomar posse na presidência da entidade, na presença dos principais chefes de Estado do continente, ele estava sendo preso no Panamá portando cerca de 10 quilos de cocaína e um lança-granadas. Extraditado para os Estados Unidos, ele poderá pegar prisão perpétua.
Nada disso foi o bastante para constranger os dignitários sul-americanos reunidos em Paramaribo, a capital surinamesa. Nenhum presidente considerou a hipótese de rever a nomeação de Bouterse. Como se nada tivesse acontecido, a Unasul desejou "sucesso" ao ex-ditador condenado por narcotráfico.
Na mesma ocasião, como a comprovar a total desmoralização da Unasul, os presidentes renderam homenagem a Hugo Chávez, ressaltando "a dor do vazio que sua ausência nos deixou", qualificando-o como "símbolo de uma geração de estadistas" e exaltando seu "impulso visionário" para a criação da entidade. Entre as importantes decisões tomadas pela Unasul nessa vergonhosa cúpula está o compromisso em "participar e auxiliar nas atividades do Ano Internacional da Quinoa".
Seria apenas cômico, não fosse a Unasul, ao menos no papel, a principal iniciativa de integração continental. O Brasil poderia ter evitado o vexame estrelado por Bouterse, se seu governo não estivesse ideologicamente atado a compromissos que fazem da Unasul um palanque bolivariano.