Diplomacia e Relações Internacionais
Por que o mundo é como é (e como ele poderia ser melhor...) - Paulo Roberto de Almeida (Ordem Livre)
Originalmente, este foi o primeiro texto da série "Volta ao Mundo em 25 Ensaios", elaborado ainda no final de 2009 e publicado em janeiro de 2010, dando início a estas reflexões sobre o mundo atual.
A republicação pelo site Ordem Livre está sendo feito de maneira aleatória, sem atender ao ordenamento e encadeamento dos textos que eu havia organizado originalmente. Ao final, colocarei os textos em sua sequência lógica, na ordem original, por meio de uma listagem cronológica e temática. Isso é importante, pois o raciocício histórico, teórico e substantivo foi sendo construído gradativamente, até chegar nas conclusões.
Paulo Roberto de Almeida
Por que o mundo é como é (e como ele poderia ser melhor...)
Ordem Livre, em 27 de Junho, 2014.
Autor Paulo Roberto de Almeida
Imaginemos um viajante estratosférico, vindo para a Terra em sua espaçonave, procurando compreender o que vê, em aproximações sucessivas. Primeiro visualizaria aquele planeta azul de que falam os astronautas, depois veria enormes manchas cinzas ou verdes, segundo os oceanos focalizados, manchas interrompidas aqui e ali por grandes ou pequenas massas de cores distintas, correspondendo às regiões dos cinco ou seis continentes entrevistos do espaço: verde para as densas florestas tropicais, o amarelo ou ocre dos espaços desérticos, as tonalidades mais claras das regiões temperadas e o branco dos pólos. Depois, teria a grande variedade de cores exibida pelas implantações agrícolas e construções urbanas das distintas sociedades humanas.
Chegando mais perto, ele veria que algumas dessas explorações rurais exibem um quadriculado perfeito, correspondendo ao que chamamos de agronegócio, enquanto outras estão dispersas em vastas zonas de ocupações irregulares, com muita destruição dos recursos naturais em volta e alguma degradação ambiental: são as unidades de exploração familiar, de subsistência e de baixa produtividade, geralmente nas regiões tropicais. Quanto às zonas urbanas, nosso viajante extraterrestre teria todos os tipos de paisagens: enormes cidades modernas, repletas de grandes edifícios modernos, cortadas por vias expressas; pequenas cidades do interior, de arquitetura mais tradicional; e uma variedade de grandes ou pequenas cidades com todos os tipos de habitações: condomínios de luxo, mansões espetaculares, mas também favelas urbanas e ajuntamentos periféricos, revelando a imensa desigualdade da condição humana nas sociedades que se distribuem por todas essas regiões e continentes.
Planando, agora, a baixa altura sobre essas cidades, nosso visitante exterior teria todas as combinações possíveis à sua disposição: pessoas de alta renda se deslocando em carros de luxo ou em helicópteros pessoais, cidadãos de classe média fazendo compras em shoppings multicoloridos pelos neons atrativos, trabalhadores especializados concentrados em fábricas ou escritórios, empregados informais em situação de exploração abjeta em negócios não registrados, capitalistas do campo aqui, agricultores miseráveis e trabalhadores volantes ali, em regiões de agricultura primitiva e de baixa produtividade. Nas ruas e semáforos, ele se depararia com carros fechados, passantes apressados, vendedores de ocasião e uma quantidade variável de pedintes andrajosos, dependendo do país ou região que estivesse sobrevoando. Nas zonas tropicais os contrastes seriam certamente mais fortes do que nas temperadas, embora as migrações humanas, legais e clandestinas, venham colorindo todo o planeta de todas as gradações possíveis no imenso leque de riquezas e misérias humanas.
Este é o nosso mundo, rico e miserável ao mesmo tempo, contraditório nas situações econômicas e nos regimes políticos, variado pelas línguas e religiões, mas unificado pelos mesmos desejos humanos de algumas coisas muito simples: comida, segurança, bem-estar material, boa saúde, disponibilidade de bens úteis à existência e alguma perspectiva de melhora no curso da própria geração. Todos aspiram a essas mesmas coisas, em graus variáveis de necessidade ou ambição, assim como todos desejam um bem intangível, um pouco mais difícil de ser "entregue": a felicidade humana; isto é, a realização de outros sentimentos ainda mais subjetivos: o amor, o afeto, a satisfação pessoal no convívio com entes queridos.
Se ao nosso viajante do exterior fosse facultado pesquisar livremente entre os terráqueos as fontes e as razões daquela sensação que os anglo-saxões chamam de
fulfilling (e que os franceses designam por
accomplissement), ele constataria que a condição básica para sua realização é simplesmente esta: a liberdade de escolha. Poder escolher onde morar, definir uma profissão, realizar-se como ser social, dispor de uma renda suficiente para fazer suas próprias opções em termos daqueles bens materiais e ofertas culturais que melhor atendam sua personalidade, deslocar-se livremente pelo planeta para visitar templos, museus, florestas e praias, comer em bons restaurantes, comprar roupas vistosas e confortáveis, ser atendido nos melhores hospitais e poder conversar livremente e relacionar-se com quem encontrar pela frente, ou simplesmente ficar sentado em frente da televisão, sem outras preocupações do que a certeza de que se dispõe de seres amados em volta de si, que lhe dão a segurança de uma vida tranquila, sem os sobressaltos de guerras, violência, delinquência ou catástrofes de qualquer tipo.
Esse talvez seja o conjunto de requisitos materiais e imateriais que poderiam definir aquilo que chamamos de felicidade humana, algo ainda raro em nossos tempos. Ela não está diretamente correlacionada ao PIB per capita ou ao IDH dos países, embora não se possa descartar a imensa interface que existe entre, de um lado, um nível satisfatório de renda e de serviços públicos (como a assistência à saúde, por exemplo), bem como um provimento adequado de educação de base para o enfrentamento dos problemas mais comezinhos da vida humana; e, de outro, essa sensação
d’accomplissement, que se aproxima, em parte, da felicidade. A felicidade é a liberdade de você poder escolher o que lhe faz ser feliz, e para isso é preciso dispor de um mínimo (ou provavelmente mais do que isso) de meios materiais.
O fato é que a imensa maioria dos seres humanos, talvez dois terços de um planeta com mais de seis bilhões de habitantes, não dispõe da simples liberdade de escolher onde trabalhar, onde morar, como garantir sua segurança alimentar, física ou até a satisfação de necessidades as mais simples: água potável, saneamento básico, transporte acessível, escolas e hospitais de qualidade, sem mencionar a liberdade de escolher quem definirá as regras que impactarão a sua vida no trabalho, na disponibilidade da renda pessoal, na habitação e na segurança, justamente. Uma das explicações aventadas para essas imensas desigualdades distributivas e de acesso aos bens materiais e intangíveis é a de que os ricos são ricos porque extraíram sua riqueza dos pobres, povos ou países pobres dominados e explorados pelos cidadãos ricos dos países ricos, cabendo, portanto, liquidar com a dominação e com essa exploração para corrigir imediatamente as iniquidades existentes.
Esse simplismo e esse maniqueísmo já não são mais aceitáveis hoje em dia (se algum dia o foram), bastando, aliás, que o nosso extraterrestre examine a situação do Haiti, tanto a partir da estratosfera – de onde ele veria a mesma ilha, Hispaniola, perfeitamente dividida numa porção verde, à direita, e numa mancha ocre e desolada do lado esquerdo, que corresponde exatamente ao Haiti –, quanto no plano histórico-político, posto que o Haiti foi a primeira colônia da América Latina a se libertar da dominação européia, ainda no final do século 18. Pois bem, o Haiti nunca foi explorado diretamente por potências estrangeiras desde então, constituindo uma nação independente que escolheu o seu próprio caminho para o subdesenvolvimento e para a degradação ambiental. Uma mistura de elites insensíveis e população miserável, jamais educada para explorar os recursos naturais de forma sustentável, representou a “receita” terrível que levou o Haiti à situação que ele exibe hoje: não só um Estado falido, mas uma sociedade arrasada pela degradação ambiental e pela desestruturação social. Em uma palavra: uma população sem qualquer liberdade de escolha, a não ser (embora precariamente) a de emigrar e de tentar refazer a vida em outros países.
O Haiti não é o que é hoje por excesso de “exploração capitalista”, como querem alguns, mas provavelmente pela insuficiência de “exploração” capitalista, pela incapacidade de suas elites de inserir o país nos amplos circuitos da economia mundial, de onde poderiam vir a tecnologia, os capitais, a inovação e, sobretudo, as idéias que permitiriam ao país um pouco de progresso, de prosperidade, enfim, um pouquinho de felicidade humana. O erro fatal do Haiti foi ter se isolado da comunidade internacional, da economia mundial, e preservado estruturas defasadas, feitas de má educação, de escassos valores cívicos, baixa integração social. Tudo isso deixou o Haiti num patamar de baixa produtividade do trabalho humano, com reduzidas possibilidades de crescimento econômico e, atualmente, com poucas saídas para sua inserção internacional. Povos atrasados são feitos, antes de mais nada, de países isolados. A geografia e a história confirmam essa verdade elementar.
Olhando o mundo de maneira desprevenida, nosso extraterrestre veria que os países mais abertos à inovação, ao comércio, aos intercâmbios ilimitados com todos os demais povos são também as sociedades e nações mais avançadas e progressistas, de maior nível de renda e com um grau de ‘felicidade humana’ um pouco maior. Isso só se alcança com liberdade de escolha, e esta depende fundamentalmente de quão aberto é o país ao exterior. Nosso viajante exterior, mesmo sem ser especialmente educado em economia ou sem dispor de estatísticas completas, não teria muita dificuldade em concluir que a liberdade individual, a liberdade de dispor de seus bens sem que alguém (ou o próprio Estado) ameace tomá-los de maneira arbitrária, a liberdade de poder transacionar esses bens (ou a sua própria força de trabalho) sem muitas restrições impostas por governos intrusivos, essas qualidades são as que criam povos ricos, sociedades prósperas e amantes da paz.
Falaremos em maior detalhe sobre tudo isso mais adiante...
* Publicado originalmente em 18/01/2010.
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