Em meu último artigo, escrito horas antes de eclodir a crise paraguaia, usei metáfora futebolística para caracterizar a ação do Itamaraty nos últimos tempos: defesa mais que razoável; ataque bisonho. A defesa se referia à postura defensiva do Ministério das Relações Exteriores no campo político. O ataque, às propostas brasileiras no terreno econômico. Com base no primeiro ano e meio do lado político da diplomacia do governo Rousseff, sublinhei as virtudes do afastamento em relação a Teerã e Caracas. O Itamaraty parecia ter sido capaz de se distanciar dos excessos a que se havia exposto na época da tríade Amorim-Guimarães-Garcia. Com otimismo, Rio Branco ameaçava voltar a se sobrepor à diplomacia de grêmio estudantil que tanto agradava a Lula. Em contraste, no terreno propositivo, especialmente na esfera econômica, eu havia mencionado a pobreza das propostas brasileiras no quadro multilateral. Primeiro, na Organização Mundial do Comércio (OMC), enfatizando a necessidade de que negociações comerciais levassem em conta flutuações cambiais, assunto em relação ao qual até o Fundo Monetário Internacional, como agência multilateral especializada em finanças, se revela relativamente impotente. E também no G-20, ao propor nova rodada de negociações comerciais multilaterais na OMC, a despeito de o Brasil ter-se tornado um dos grandes delinquentes em matéria de escalada do protecionismo no passado recente. Havia ventilado como bastante provável a hipótese de que o Itamaraty estivesse sendo posto à margem do processo decisório de política comercial. De fato, é difícil crer que possam ter bom trânsito no Palácio dos Arcos iniciativas que desgastam o bom nome brasileiro acumulado desde a Rodada Uruguai até os vitoriosos contenciosos do algodão e do açúcar. As impressões digitais do eixo Fazenda-Planalto são visíveis. Na verdade, devo agora reconhecer que minha avaliação sobre a vertente política da diplomacia brasileira estava equivocada. Não havia bola de cristal disponível para prever as trapalhadas da diplomacia do Brasil no quadro da crise política paraguaia. Em especial, a propensão a repetir erros do passado. O que se conclui agora é que, na política exterior brasileira, não é só o ataque que é bisonho, a defesa também o é. O Paraguai foi censurado por seus companheiros do Mercosul por açodamento na aplicação de rito de impeachment previsto na Constituição, embora não seja claro qual teria sido o timing aceitável pelos críticos da deposição de Fernando Lugo. No passado, o preciosismo do governo brasileiro na avaliação dos ritos processuais foi bem menos marcado na apreciação das peripécias eleitoreiras de Hugo Chávez na Venezuela. Certamente, um caso de dois pesos e duas medidas. É sabido que o Itamaraty tentou mitigar a impetuosidade presidencial e houve sucesso em impedir tresloucadas sanções econômicas ao Paraguai, que contavam com a simpatia do eixo Buenos Aires-Caracas. Mas a presidente Dilma, a julgar por revelações de dirigentes uruguaios, teve papel ativo e decisivo quando foram consideradas as consequências da suspensão do Paraguai como membro do Mercosul, com possível remoção do obstáculo à admissão da Venezuela, cujo ingresso dependia de voto favorável do Senado paraguaio. Suspenso o Paraguai, admita-se a Venezuela. A pressa em resolver o assunto, em benefício da postulação venezuelana, contrasta com a censura à pressa paraguaia em aprovar o impeachment de Lugo. A melhor justificativa encontrada pelo Itamaraty - "é a Venezuela que está sendo admitida no Mercosul, e não Chávez" - é ridícula, para dizer o mínimo. Fica claro que a política externa brasileira hoje tem sido formulada e implementada em grande medida ao arrepio do Itamaraty. A perspectiva de curto prazo tem prevalecido sobre qualquer visão estratégica sobre o papel político e econômico que o País possa desempenhar em escala global. É uma versão um tanto inusitada de diplomacia presidencial, com o presidente tornando-se o principal formulador da política externa. Não se discute que a política externa brasileira tenha como pilar a manutenção de relações cordiais com seus vizinhos. De fato, a secular convivência pacífica com os vizinhos é um dos aspectos mais positivos da tradição diplomática do Brasil, configurando um contraste positivo com diversos outros emergentes. Essa prioridade explicaria as acomodações que têm marcado a postura do País diante de Caracas e Buenos Aires. Mas o preço da manutenção de tal postura tem aumentado desmesuradamente à medida que "se va la mano de los hermanos", especialmente no caso da Argentina, onde prospera o primitivismo peronista. Certamente haverá limites para a capacidade brasileira de fazer vista grossa às decisões argentinas prejudiciais ao Brasil e, também, aos destemperos chavistas. Que credibilidade global pode ter um Brasil a reboque de Argentina e Venezuela? Não só o Mercosul fica ainda mais estigmatizado como parceiro comercial preferencial das economias desenvolvidas, mas também a postulação brasileira ao Conselho de Segurança da ONU, emblemática do anseio por um papel global, torna-se despropositada. |
Doutor em Economia pela Universidade de Cambridge; é professor titular no Departamento de Economia da PUC-Rio |