Piratas ou corsarios? Livro mistura as duas designacoes, num desservico 'a historia; pessimo exemplo
Diplomacia e Relações Internacionais

Piratas ou corsarios? Livro mistura as duas designacoes, num desservico 'a historia; pessimo exemplo


Os autores devem saber a diferença entre piratas e corsários. O fato de que tenham preservado o nome de Piratas no título do livro pode ser apenas má-fé, talvez orientados pela Editora para vender mais, mas não deixa de ser uma desonestidade intelectual, pois quem pesquisa e conhece história sabe muito bem a diferença.
Nenhum dos casos descritos abaixo na matéria -- e pode ser que o jornalista também ignore a distincão -- se refere a casos de pirataria, muito menos o do Nordeste pelos ingleses. Todos eles eram invasões chanceladas pelos reis, com patentes de corso ou não, mas nunca de pirataria.
Um desserviço à História e à reputação desses "historiadores".
Paulo Roberto de Almeida

Além do butim

Reinos europeus apoiavam os ataques de corsários à costa brasileira como forma de contestar a divisão do Novo Mundo por Portugal e Espanha
CARLOS FIORAVANTI | 
Pesquisa Fapesp, Edição 227 | Janeiro de 2015


© PLAN DE LA BAYE, VILLE, FORTERESSES, ET ATTAQUES DE RIO DE JANEIRO... REPRODUÇÃO DO LIVRO IMAGENS DE VILAS E CIDADES DO BRASIL COLONIAL

A esquadra de Duclerc alinhada na baía de Guanabara: sem resistência das forças locais
Filho de uma família nobre da Inglaterra, Thomas Cavendish teve sorte ao chegar com sua esquadra à vila de Santos, em 1591, e encontrar todos os moradores reunidos para a missa de Natal. Já conhecido como “franco ladrão dos mares”, Cavendish prendeu todos, instalou-se na sacristia do colégio dos jesuítas e durante dois meses saqueou a vila com seus homens e queimou arquivos públicos e engenhos de cana-de-açúcar. Era mais um ataque de piratas à costa brasileira. Mais do que uma simples aventura, esse tipo de invasão representava uma contestação do governo inglês à divisão das terras do Novo Mundo entre Espanha e Portugal, formalizada por meio do Tratado de Tordesilhas em 1494. Depois dos ingleses, os franceses, que já haviam atacado o Rio de Janeiro, invadiram o Maranhão e, mais tarde, os holandeses, depois de uma tentativa fracassada na Bahia, ocuparam Pernambuco por quase 30 anos.
“Não respeitar os limites territoriais era uma forma efetiva de questionar a divisão do Novo Mundo imposta por Espanha e Portugal”, diz o historiador Jean Marcel Carvalho França, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Franca. “Outra forma de contestação era a diplomacia. As invasões criavam um problema, pondo o bode na sala, como se diz, e forçavam a revisão dos limites territoriais por meio da negociação diplomática.” Segundo ele, a pirataria ganhou força e a estratégia de invadir as colônias ibéricas, de certa forma, deu certo porque Espanha e Portual não tinham capacidade militar para defender seus domínios nas Américas. Pelo mesmo motivo, suas frotas eram atacadas com frequência, resultando em perdas imensas de ouro, pau-brasil e marfim da África com destino à Europa. Mesmo que não tenham conseguido se fixar no Brasil, franceses e ingleses formaram colônias nas Américas Central e do Norte.
Os ataques às colônias não eram uma justificativa forte o bastante para os governos das terras invadidas romperem relações diplomáticas com os invasores. Espanha e Portugal – nessa época amalgamados por meio da União Ibérica, implantada em 1580 e desfeita em 1640 – sabiam que o domínio sobre as terras da América era frágil, ressalta o historiador. “Era um exercício de ponderação, não se podia levar as incursões a ferro e fogo porque, muitas vezes, havia interesses comerciais maiores em jogo”, diz ele. Por esse motivo, Portugal preferia aceitar pacificamente o papel de vítima em vez de guerrear em desvantagem com outros reinos. Para evitar problemas maiores, valia até mesmo pagar indenizações, como fez com Nicolas Villegagnon, em compensação pelos prejuízos causados pela expulsão dos franceses do Rio de Janeiro em 1567. Outra indicação do interesse em manter a paz e os negócios é que os comerciantes portugueses continuaram vendendo suas mercadorias para os holandeses que ocuparam Recife de 1630 a 1654. “O limite não era moral”, França comenta, “era comercial”.
França e sua colega Sheila Hue, pesquisadora do Real Gabinete Português de Leitura, do Rio, depois de 20 anos analisando e traduzindo narrativas de viajantes europeus que visitaram o Brasil, com apoio da FAPESP e outras agências de financiamento, escreveram Piratas no Brasil – As incríveis histórias dos ladrões dos mares que pilharam nosso país, publicado no final de 2014 (Ed. Globo). O livro descreve dois ataques ingleses – de Thomas Cavendish a Santos, em 1591, e de James Lancaster a Pernambuco, em 1595 – e dois franceses – de Jean-François Duclerc, em 1710, e de René Duguay-Trouin no ano seguinte, ambos ao Rio.
Cavendish, Lancaster, Duclerc e Trouin, os líderes de quatro grandes ataques à costa brasileira, “faziam o mesmo que Vasco da Gama, Cabral e outros exploradores, eram até mais profissionais”, afirma França. A única diferença é que os navegadores portugueses estavam dentro de uma suposta legalidade, descobrindo terras ainda sem dono ou explorando os domínios ibérios definidos pelo Tratado de Tordesilhas, enquanto os piratas – ou, com mais exatidão, corsários – agiam fora da lei imposta por outros países, embora com apoio de suas Coroas. Segundo França, o famoso pirata inglês James Cook, que visitou o Rio em 1768, “não tinha nada de pirata, era um burocrata, poderia trabalhar no Banco Central”. A má fama da categoria resulta em boa parte dos piratas independentes que se concentravam no mar do Caribe, atacando quem pudessem, de preferência galeões espanhóis carregados de ouro extraído das minas americanas. Aos olhos dos padres católicos, ingleses e franceses também eram uma encarnação do mal, por serem “hereges e luteranos, ministros das trevas licenciosos”, observam França e Sheila em Piratas.
O corso, diferentemente da pirataria e da ação dos flibusteiros, era um empreendimento legal e muitas vezes oficial, praticado pelas potências europeias nos momentos de guerra”, registrou Maria Fernanda Bicalho em A cidade e o império – O Rio de Janeiro no século XVIII (Civilização Brasileira, 2003), escrito com base em sua pesquisa de doutorado, realizado na Universidade de São Paulo (USP). “Os capitães dos navios corsários recebiam uma carta de marca, concedida pelo rei, que os autorizava a atacar, a tomar os navios e a saquear os domínios das nações inimigas. Seu objetivo não era a destruição do comércio e das riquezas do adversário, mas a sua apropriação por meio do apresamento de embarcações mercantis, do confisco de suas mercadorias, do assédio e do saque às vilas e cidades pertencentes aos estados beligerantes.”
Nem sempre os mais fortes venciam. Como relatado por França e Sheila, Cavendish se apossou do ouro e do açúcar saqueado dos armazéns e dos navios ancorados no porto (um poeta e soldado da tripulação roubou um manuscrito jesuítico, usado na alfabetização dos nativos, e o doou a uma universidade de Oxford), incendiou a vila vizinha de São Vicente e partiu rumo ao sul. Seu plano era atravessar o estreito de Magalhães e prosseguir no seu ataque ao monopólio ibérico das riquezas da América, mas fortes tempestades atrapalharam os planos e dispersaram sua frota. A tripulação, faminta e exausta, se revoltou e Cavendish voltou a Santos. Os moradores, dessa vez, haviam se organizado e conseguiram repudiar os ingleses. Dos 75 homens embarcados um ano antes, somente 16 voltaram à Inglaterra.
Quatro anos depois, Lancaster atacou o porto de Recife com três navios e 275 tripulantes. A defesa foi pífia. “Os soldados pernambucanos, ainda maus artilheiros, erram os tiros, cedendo à disciplina inimiga e ainda mais à falta de munições”, relatam França e Sheila. “Os defensores se retiraram, acovardados.” Um mês depois, Lancaster voltou com os navios abarrotados de açúcar, pau-brasil, algodão e mercadorias de alto preço saqueadas de um navio português, como pimenta, cravo, canela, maçã, noz-moscada, tecidos e minerais preciosos. “Foi o mais rico butim da história da navegação de corso da Inglaterra elisabetana”, concluem os autores de Piratas.

© OLINDA, GRAVURA DE FRANS POST. REPRODUÇÃO DO LIVRO IMAGENS DE VILAS E CIDADES DO BRASIL COLONIAL

Olinda, a rica cidade vizinha de Recife,
alvo de Lancaster: para os ingleses, expedição bem-sucedida
Um governador dissimulado
As invasões exibiam o despreparo militar e administrativo tanto dos moradores das principais cidades da colônia quanto dos invasores. Em 1710, Duclerc chegou com seis navios e cerca de 1.200 homens, mas demorou para entrar na baía de Guanabara e os moradores locais dispararam os canhões dos fortes, afugentando os franceses. Duclerc não desistiu. Seguiu para o sul, desembarcou em outra baía e marchou com seus homens por terra para a cidade do Rio. Os moradores resistiram mais uma vez e, após intensos combates, os franceses foram derrotados. Duclerc foi capturado e preso. Depois, misteriosamente, terminou assassinado na prisão.
No ano seguinte chegou outra expedição, maior e mais bem armada, com quase 6 mil homens, chefiada por Trouin. Este já havia tentado, sem sucesso, por três vezes, entre 1706 a 1709, se apossar da frota portuguesa que regressava do Brasil carregada de mercadorias. “A 12 de setembro de 1711, num lance cinematográfico, a esquadra francesa composta de 18 navios fez a entrada mais espetacular na barra do Rio de Janeiro de que se tivera notícia”, relatou Maria Fernanda Bicalho em A cidade e o império. “Nunca, nem mesmo experientes pilotos portugueses, haviam-na alcançado com tanta facilidade e mostraram tanta perícia em romper a estreita e fortificada barra daquela importante praça colonial. Encobertas por denso nevoeiro matinal, em poucas horas todas as embarcações que compunham a esquadra de Duguay-Trouin encontravam-se dentro da baía, diante dos olhares incrédulos e perplexos das autoridades, soldados e moradores da desafortunada cidade.”
O governador da capitania do Rio, Francisco de Castro Morais, tinha sido avisado da chegada dos franceses, mas descuidou das defesas por achar que a notícia era falsa. Diante dos invasores, desautorizou qualquer contra-ataque e, por fim, ordenou o abandono das trincheiras e a evacuação da cidade. Os moradores fugiram em uma noite de muita confusão, sob chuva intensa, descrita com vivacidade em Piratas. Os franceses encontraram a cidade praticamente deserta e só a devolveram mediante o pagamento de um resgate elevado, de 610 mil cruzados em moeda, 100 caixas de açúcar e 200 bois. O pagamento corroeu a economia da cidade e gerou uma onda de protestos contra Castro Morais, acusado de gerar o caos, de deixar a cidade desprotegida e de negociar com os franceses em proveito próprio – seu apelido, “o Vaca”, refletia sua fama de dissimulado. A situação só piorava sua fama. “O governador era acusado de ter matado ou permitido o assassinato de Duclerc, que os franceses chamavam de assassinato sórdido”, diz França.
Segundo ele, Castro Morais e o sobrinho dele ganharam muito dinheiro negociando com os franceses. “Os franceses, já que não podiam levar tudo, vendiam as mercadorias de que haviam se apossado para seus antigos donos, e o governador fez a intermediação”, comenta. “O sobrinho dele trata Chancel Lagrange, um dos oficiais da esquadra de Trouin, de ‘meu querido’ ao lamentar não ter conseguido um macaco que lhe oferecia como cortesia.” Julgado e condenado por má condução dos negócios públicos, o governador foi enviado para a Índia e, tempos depois, perdoado.
Grande público
França e Sheila traduziram cerca de 100 relatos de viajantes sobre o Brasil, publicados em vários livros desde 1995. Ao prepararem o Piratas, valorizaram documentos originais, como a carta do sobrinho do governador a Lagrange, e priorizaram a narrativa, centrada nos personagens, sobre as análises conceituais. O resultado é um livro agradável, escrito por historiadores acadêmicos. “Os franceses fazem isso há muito tempo”, diz França. Um exemplo é Guilherme marechal ou o melhor cavaleiro do mundo, do historiador Georges Duby, dirigido para o grande público (editado no Brasil pela Edições do Graal em 1988).
“Preparar livros que cheguem a públicos não acadêmicos é uma forma de reforçar a função social do historiador, que é construir e fixar perspectivas do passado de modo a entender e mudar o presente”, diz França. “Escrever para públicos mais amplos que o dos artigos das revistas científicas pode também ajudar os historiadores e outros intelectuais das universidades a retomar a voz na sociedade brasileira e a serem mais ouvidos para além de seus espaços habituais.”




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