Os "transgressores" do Itamaraty: o caso de Eduardo Saboia - Katia Abreu
Diplomacia e Relações Internacionais

Os "transgressores" do Itamaraty: o caso de Eduardo Saboia - Katia Abreu


O Itamaraty é um pouco como o Vaticano -- atenção, eu não disse como o papado, um regime monárquico, quase feudal -- ou seja: uma instituição semi-hermética, uma corporação hierarquizada dotada de regras próprias, um órgão infenso aos ares externos e baseado em forte ritual de obediência que visa justamente cercear e punir a dissidência.
Não se estimula a independência de pensamento, mas o seu contrário, o conformismo com as ordens superiores, certas ou erradas. Gostaria de ser desmentido nesta assertiva.
Quando essas ordens são muito erradas, ou violam a consciência de alguém, podem surgir transgressores, mas eles são raros. A quase totalidade dos diplomatas é formada por conformistas e carreiristas, o que é um pouco normal, digamos assim.
Por isso, consoante meu espírito anarco-liberal, presto minha homenagem e ofereço minha inteira solidariedade a meu colega e amigo Eduardo Saboia. 
Espero, assim, que meus colegas e amigos da comissão de inquérito ouçam mais suas próprias consciências do que ordens superiores, que parecem decididas a, e comprometidas em puni-lo.
Os companheiros que mandam no Brasil atualmente podem admirar e até servir regimes stalinistas em outros países, mas não precisam introduzir um Gulag virtual no Brasil. Deixem o Itamaraty continuar como um Vaticano tropical.
Paulo Roberto de Almeida
Um justo entre duas nações
KÁTIA ABREU
Folha de S.Paulo, 31 de agosto de 2013
Saboia, na Bolívia, ousou contrariar o Itamaraty assim como foi feito com a emissão de vistos a judeus
Impossível não admirar a conduta de Eduardo Saboia, encarregado de negócios na Bolívia, de trazer para o Brasil o senador Roger Pinto Molina, asilado há 15 meses em nossa embaixada em La Paz. Tomou atitude nobre e corajosa.
No passado, outros diplomatas brasileiros ousaram contrariar a cúpula do Itamaraty. Na França, o embaixador Luís Martins de Souza Dantas emitiu centenas de vistos para o Brasil a perseguidos pelos nazistas.
Mesmo depois de ser repreendido e formalmente proibido de conceder vistos, seguiu assinando documentos de próprio punho, com datas anteriores à da proibição. Enquanto isso, em Hamburgo, o vice-cônsul brasileiro e escritor João Guimarães Rosa também agiu assim, concedendo vistos de entrada no Brasil a judeus.
Décadas depois da façanha, Souza Dantas virou personagem do Museu do Holocausto, em Israel. Foi proclamado "Justo entre as nações", título atribuído a pessoas que arriscaram suas vidas para ajudar judeus perseguidos pelo regimes nazista e fascista.
Mas não se trata aqui, como não o foi no passado, de defender quebra de hierarquia nem de comparar o terror do Holocausto a um fato que pode não ir além de um incidente diplomático. Quero apenas mostrar que, em situações extremas, o diplomata deve recorrer a si mesmo.
Ressalte-se que o embaixador anterior, Marcel Biato, já havia concedido o asilo a Molina, fazendo valer esse direito internacional.
E o senador teve de pedir asilo por ter denunciado a corrupção no governo de seu país. Ousou fazer o que muitos não tiveram coragem de fazê-lo.
Em resposta, ganhou um processo "judicial", típico de "socialistas bolivarianos" que tratam os opositores como se criminosos fossem. É a criminalização da política, levada a cabo por governantes que não nutrem respeito à democracia e aos direitos civis.
Há que lembrar, também, que a lista de incidentes diplomáticos na relação do Brasil com a Bolívia é extensa. Basta citar dois episódios: a ocupação militar de uma refinaria da Petrobras e a vistoria de três aviões da Força Aérea Brasileira, que deveriam ser invioláveis, inclusive um que levava nosso ministro da Defesa.
E é bom que se diga que o senador Molina não está foragido no Brasil. Foi retirado da Bolívia em uma operação conduzida pelo consulado brasileiro. O que se espera, agora, é que não tenha destino diferente do que teve Cesare Battisti, que conseguiu permissão para ficar no Brasil, mesmo com pedido de extradição aprovado pelo Supremo Tribunal Federal.
Quando foi trazido ao país, Molina vinha de um confinamento de quase 500 dias num cubículo da embaixada brasileira, sem direito a banho de sol, em uma condição de deterioração física e psíquica. Bem diferente do tratamento principesco que o ex-presidente de Honduras Manuel Zelaya recebeu ao longo dos quatro meses em que se manteve exilado na nossa embaixada em Tegucigalpa.
Alguns aguentam mais, outros menos. Se Molina ameaçou suicídio, é porque estava no limite de suas forças. Basta nos colocarmos na posição do outro para percebermos melhor sua condição dramática.
O encarregado de negócios Eduardo Saboia vivenciou o drama do senador. Ninguém melhor do que ele para decidir o que fazer, dada a sua proximidade e diante da falta de comando hierárquico.
Se tomou uma decisão humanitária, ele o fez em respeito aos direitos humanos defendidos por nosso governo. Se a cúpula do Itamaraty não estava observando esses direitos, um de seus diplomatas optou por fazê-lo, mesmo colocando vidas em risco.
Seguiu valores maiores, com determinação. Não se conformou com a rotina burocrática baseada na omissão, embora essa omissão possa ter sido, ela própria, uma decisão. Cumpriu todo um périplo até chegar, enfim, a território brasileiro.





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