2. A reação dos perdedores: resistência política e luta armada
Seja qual for a interpretação que se decida adotar ainda hoje, o golpe militar de 1964 contra o regime de João Goulart – ou a “revolução”, segundo seus promotores – provavelmente não representou nada de muito diferente do que ocorreu na mesma época em diversos outros países latino-americanos. Talvez não tenha sido realmente nada de muito diferente, inclusive no que respeita às forças de esquerda que lutavam contra os regimes oligárquicos ou de burguesias alinhadas ao imperialismo americano durante a era da Guerra Fria. Estas forças se dividiram, logo em seguida, em dois grupos: depois de uma primeira preeminência dos partidos comunistas de orientação (e subserviência) soviética, ocorreram as primeiras cisões na esquerda latino-americana, basicamente representadas pela criação de partidos comunistas pró-chineses (tendentes a apoiar o conceito de guerra popular de base camponesa, conforme o modelo maoísta) e de movimentos identificados com a visão foquista-guerrilheira do processo de luta contra o Estado burguês, privilegiando os métodos fidelistas-guevaristas de tomada do poder.
A esquerda brasileira também acompanhou essas divisões dos movimentos de esquerda no plano mundial e passou a se organizar em função dos modelos respectivos de lutas políticas e militares. As cisões da esquerda brasileira se deram sobretudo em detrimento do “Partidão” (o “velho” PCB); foram muitas as que ocorreram, a começar pelo grupo maoísta que acompanhou as críticas de Mao Tsé-tung ao “revisionismo soviético” então representado pela desestalinização conduzida por Nikita Kruschev: se constituiu então o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), que pretendia retomar a tradição dos primeiros anos do poder bolchevique, mas que acabou seguindo a via chinesa da guerra “camponesa” (consubstanciada mais tarde na guerrilha do Araguaia).
Vários outros grupos se organizaram, geralmente com o sentido de “passar à ação”, ante o reformismo do Partidão. Não havia muita elaboração teórica em torno das opções de luta, nem uma análise “científica” do que era a sociedade brasileira, ou sobre sua disposição de adotar a luta armada como uma forma de resistência a um regime que, nessa conjuntura (1965-1966), estava longe de ser uma ditadura feroz. Muitos desses grupos se organizaram atendendo ao apelo das conferências realizadas em Havana, a Tri-continental (reunindo militantes dos três continentes do Terceiro Mundo) e a dos movimentos guerrilheiros da América Latina, da qual resultou a criação da OLAS, Organização Latino-Americana de Solidariedade, uma mini-internacional que pretendia estimular o modelo cubano em todos os países do continente.
De fato, para a esquerda latino-americana, nenhum episódio da Guerra Fria foi tão marcante quanto a revolução cubana, e seu desfilar de “guerrilheiros heroicos” lutando contra um ditador submisso aos EUA. Ché Guevara simbolizava essa luta e foi com ele que se identificavam os jovens que também pensavam libertar o Brasil da hegemonia americana e instaurar um regime de “justiça social” e de “democracia popular”, embora divididos entre a adesão a um ou outro dos socialismos realmente existentes. Cuba era justamente o exemplo de que se podia derrocar um regime corrupto e criar o “homem novo”, base da transformação radical que se esperava fazer. As primeiras reações ensaiadas pelos militantes que recusavam a via reformista e pacifista do Partido Comunista Brasileiro, de linha soviética, partiam de pressupostos de inspiração cubana ou maoísta, no sentido de que só a luta armada poderia representar a verdadeira libertação do Brasil.
Todo o ambiente universitário era invariavelmente caracterizado por uma ideologia de esquerda, essencialmente marxista, nas diversas variantes da época, a que se somava a radicalização concomitante da chamada Igreja progressista. Os jovens dessa geração foram sendo levados quase naturalmente para a opção socialista, que na época se apresentava como uma solução “factível” e “possível”, tendo em vista os exemplos precedentes da revolução bolchevique, da guerra civil conduzida por Mao Tsé-tung na China e, sobretudo, porque bem mais perto do Brasil, da guerrilha cubana. Progressivamente, esses movimentos foram se preparando para a luta armada, de acordo com as diretrizes que emanavam de Havana, onde tinha sido organizada, em 1965, a Conferência Tri-continental, para prestar solidariedade ao Vietnã do Norte, em sua luta contra a república pró-americana do sul, e para estimular a luta armada na América Latina, como recomendava Fidel Castro, e como já tinha passado à ação Ché Guevara.
Guevara era – parece que continua sendo, a despeito de todas as evidências em contrário – o símbolo da rebeldia juvenil contra a opressão capitalista, e a metodologia então proposta para romper com o capitalismo e o imperialismo era dar início a um “foco guerrilheiro”, conforme teorizado pelo militante francês Regis Debray. No Brasil, entretanto, na ausência de massas camponesas sujeitas a algum tipo de dominação “feudal”, ou de uma “Sierra Maestra” próxima das cidades e dos latifúndios, nem a solução maoísta da guerra camponesa, nem o modelo cubano da coluna de guerrilha rural pareciam aplicáveis, razão pela qual os líderes comprometidos com a luta armada adotaram a via da guerrilha urbana, como depois seria enfatizado no “Mini-manual do guerrilheiro urbano”, do dissidente do Partido Comunista pró-soviético e líder da Ação de Libertação Nacional, Carlos Marighella.
Essas nuances das táticas de combate não se manifestavam, contudo, de forma muito clara no debate político desses grupos guerrilheiros, que decidiram passar à ação mesmo na completa confusão do que fazer, de quem doutrinar, que tipo de mensagem política preconizar, ou qual tipo de governo se pretendia implantar, exatamente, depois que se conquistasse o poder. O que é certo é que ninguém, nenhum desses grupos, em nenhum documento programático, se dizia que a intenção, ao lutar contra a ditadura militar, era a de colocar em seu lugar uma “democracia burguesa”, ou admitir alguma variante do regime capitalista-burguês. Sem que isso ficasse muito explícito, o que se cogitava, na verdade, era alguma variante dos regimes cubano ou chinês, uma vez que a União Soviética já era julgada, então, como muito burocrática e conservadora. Alguns grupos admitiam claramente que estavam lutando pela “ditadura do proletariado”.
(continua...)
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