Vai na linha do que tenho argumentado por aqui.
O índice de liberdade de uma sociedade se mede pela autonomia concedida aos seus cidadãos para decidirem por si mesmos o seu próprio destino.
Isto diz respeito aos mais variados domínios, desde a escolha aparentemente anódina de um jornal ou canal de televisão até o livre exercício de seu gosto, passando pelas mais diferentes áreas como a saúde, a religião e, em geral, a forma de vida de cada um.
Espaços de liberdade não são dados, mas diariamente conquistados.
Conquistados contra usurpações, sufocamentos, sobretudo quando o Estado intervém em nome de um bem supostamente maior, como uma “informação mais democrática” ou a saúde dos indivíduos. É como se os indivíduos não fossem capazes de exercerem a liberdade de escolha, necessitando de um poder tutelar.
O país tem convivido com várias tentativas de sufocamento da liberdade da imprensa e dos meios de comunicação, apesar de o Supremo Tribunal Federal e a própria presidente da República terem se pronunciado claramente a respeito. Ocorre frequentemente que decisões do Supremo e diretrizes presidenciais não são simplesmente seguidas, numa aposta dos contestatários de que conseguirão reverter esse processo via mudança da opinião pública. Manifestações dos mais diferentes tipos se multiplicam, tendo como pressuposto que algo “melhor” estaria sendo oferecido, uma espécie de “bem maior”, com o objetivo de forçar o convencimento.
Trata-se do caso que ressurge sistematicamente de “democratização dos meios de comunicação”, nova roupagem do “controle social da mídia”, pois essa última expressão, na verdade, não colou. Controle soava por demais forte no que concerne ao controle de conteúdo, daquilo que é noticiado e transmitido. Democracia, enfim, é um termo, em um primeiro momento, que a todos congrega, como se tivéssemos um acordo de princípio.
Não podemos esquecer que decisões do Supremo, por exemplo, podem ser revertidas mediante a substituição de seus membros, onde se torna um fator importante o que a opinião pública pensa de um determinado assunto.
Em todo caso, a linha de corte deveria ser a liberdade dos indivíduos que dispõem de vários instrumentos à sua disposição para exercerem o seu direito: comprar ou não um jornal ou revista ou mudar de canal de televisão com o uso do controle remoto.
Aliás, esse “controle”, “remoto”, é um belo exemplo do exercício de liberdade de escolha, pois a democracia se ancora nos direitos individuais.
Devemos estar atentos para que, em nome da democracia, não se elimine um alicerce seu que é, precisamente, a liberdade de escolha. Ficaríamos com um arremedo de democracia.
Outro caso que está reiteradamente vindo à baila diz respeito às ações da Anvisa no que concerne à liberdade de escolha, intervindo mais diretamente na questão da saúde como suposto bem maior. O problema consiste em que a saúde, enquanto valor, não pode ser uma imposição estatal, mesmo que apareça travestida da forma “democrática” da consulta pública.
Aliás, tem acontecido que, quando a audiência pública contraria as diretrizes desse órgão, ela não é levada em consideração.
Exemplos são inúmeros, dentre os quais os mais recentes concernem à utilização da sibutramina enquanto remédio para emagrecimento, mesmo quando se faça sob rigoroso controle médico. É como se médicos fossem incapazes de decidir por si mesmos, carecendo de tutela. Agora, são as orientações dessa agência contra a liberdade de fumar, que adota uma forma mais palatável por comparecer sob a roupagem politicamente correta da saúde pública, do bem dos indivíduos.
Tomemos o caso, que me parece exemplar, do uso de aditivos na produção de tabaco, agora submetido a consultas públicas. O argumento utilizado diz respeito ao sabor, que poderia ser um estímulo à iniciação ao fumo por crianças. Ora, já existe lei a respeito, que deve ser rigorosamente seguida, proibindo que jovens fumem ou bebam até atingirem a idade adulta. Neste momento, estarão suficientemente informados de efeitos nocivos do uso abusivo desses produtos.
Se quiserem prejudicar a sua saúde, é um problema exclusivo dos que assim escolherem.
Não é a mesma coisa a escolha de uma pessoa de dez ou de vinte anos.
Não cabe ao Estado tutelar as pessoas que atingiram a sua maioridade, cabendo à família o cuidado dos menores.
Se certas famílias são incapazes de exercerem a sua função, cabe então ao governo estabelecer e fazer cumprir a lei — como são as restrições ao fumo, à bebida ou à compra de medicamentos por menores. A liberdade de escolha exige o exercício completo da razão, o que não é o caso de um menor de idade.
A Anvisa está a tal ponto invadindo os espaços individuais que uma questão como a de gosto por um produto se torna objeto de proibição, atingindo o exercício de uma atividade econômica constitucionalmente reconhecida. Na verdade, o que essa agência está produzindo é um impulso para o ilícito, com o aumento, por exemplo, da produção e da venda ilegal de cigarros.
A liberdade de escolha, queira ou não essa agência, continuará a ser exercida, mesmo que se faça pelo mercado negro. No caso em questão, ele já remonta a aproximadamente 30% do que é consumido no país. O resultado reside em menos impostos e desemprego, seja de agricultores familiares, seja de trabalhadores nas indústrias e na cadeia produtiva. O resultado dessa intervenção estatal está sendo forçar os consumidores a uma liberdade às avessas, feita fora do mercado (legal) propriamente dito.
Em nome da saúde, a liberdade é pervertida no mercado negro. Tolerância e bom-senso deveriam ser políticas governamentais, baseadas no pleno reconhecimento da liberdade de escolha.
O grande desafio consiste em reconhecer que a liberdade de escolha não pode ser fragmentada. O que se atinge em um setor se reflete no outro.
Tanto pode ser o uso do controle remoto quanto a opção pelo gosto de um determinado produto, qualquer que seja. Uma obra de arte e uma garrafa de vinho podem ser bons exemplos disto.
Fonte: O Globo, 12/03/2012
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