O "acusador-mor" da quadrilha da corrupção no poder - (Valor)
Diplomacia e Relações Internacionais

O "acusador-mor" da quadrilha da corrupção no poder - (Valor)


O vôo mais alto do tuiuiú
Por Raymundo Costa, Maíra Magro e Juliano Basile | De Brasília
Valor Econômico – pág. A18
02.8.12


Roberto Gurgel tem mais poder do que parece: seu gabinete guarda processos contra 200 parlamentares com foro privilegiado

Um cearense de 57 anos, discreto e de poucas palavras, quase "crepuscular" na definição dos colegas de trabalho, deve dominar a cena do primeiro dia de julgamento do mensalão no Supremo Tribunal Federal (STF). Trata-se de Roberto Gurgel Monteiro Santos, procurador-geral da República, responsável por sustentar a denúncia contra os 38 acusados de integrar o suposto esquema de compra de votos no Congresso, no primeiro mandato do governo Lula. O sucesso ou fracasso de Roberto Gurgel terá implicações no que se refere ao Ministério Público, cujas atribuições são frequentemente questionadas, e na própria consolidação do processo de redemocratização do país.
A atenção dos ministros, dos réus e da opinião pública estará voltada para Gurgel. Até chegar a esse ponto, o procurador-geral percorreu uma longa trajetória, na qual sofreu pressões de toda ordem. Desde as noites em claro estudando para o concurso que lhe abriu as portas do Ministério Público, há 30 anos, até uma tentativa de envolvê-lo com o escândalo da moda - as relações perigosas que o empresário Carlos Cachoeira mantinha com o mundo político de Brasília e que já resultaram na cassação do mandato de um senador da República, Demóstenes Torres.
Para Gurgel, foi sem dúvida um dos momentos mais tensos, nas semanas que antecederam o julgamento que se inicia hoje. O PT, mais especificamente, tentou enredá-lo no esquema de Cachoeira. Para se ter uma ideia da pressão, Gurgel chegou a mudar o comportamento reservado para contra-atacar: "Eu já disse e repito: uma das possibilidades é que isso parta de pessoas que estão muito preocupadas com o julgamento do mensalão".
O contra-ataque teve efeito fulminante. Até então, o PT se limitava a insinuar a existência de um relacionamento incestuoso do procurador com Carlos Cachoeira. Mas não mencionava a palavra mensalão. Era evidente a tentativa de constranger o procurador durante o julgamento. Na CPI em curso no Congresso, a mão que assinou um pedido de convocação do procurador foi a do ex-presidente Fernando Collor de Mello, hoje senador pelo PTB. Mas a trama para abater Gurgel fora comandada pelo PT.
O PT, até então o partido da ética e da moralidade pública, fora a sigla mais atingida pelo mensalão. Quando apareceram as gravações feitas pela Polícia Federal na Operação Monte Carlo, o partido vislumbrou uma janela de oportunidades: havia um senador (Demóstenes) e um governador do PSDB (Marconi Perillo, de Goiás) profundamente envolvidos em atividades relacionadas a Cachoeira. Além disso, havia a possibilidade de relacionar o procurador do mensalão com o esquema desmontado pela PF.
Ocorre que a Monte Carlo sucedeu uma outra operação da PF, a Vegas, realizada em 2009, quando o nome de Demóstenes Torres já aparecia em interceptações telefônicas da Polícia Federal. Por que Gurgel já naquela data não denunciara Demóstenes? Com aval de Lula e o comando do PT criou-se no Congresso a CPI do Cachoeira. Nunca antes um pedido de comissão de inquérito recebeu tanto apoio.
Mandato foi ofuscado pela relutância em denunciar Demóstenes e pelo arquivamento do caso Palocci
O ambiente político em Brasília fervilhava. Quem visitasse José Dirceu na casa que ele alugou no Lago Sul, bairro nobre da capital, para contatos políticos e acompanhar mais de perto as preliminares do julgamento, saía convencido de que Gurgel não chegaria ao dia de hoje como o responsável pela acusação contra os mensaleiros.
"Ele vai cair por si próprio porque está envolvido (no esquema Cachoeira)", dizia Dirceu a seus visitantes. "Ele sentou em cima. Já devia ter pedido demissão. O cara sentou em cima e não tem explicação". Na tribuna da CPI, Collor anunciou que entraria com seis representações contra Gurgel e sua mulher, a subprocuradora Cláudia Sampaio.
O discreto Gurgel nunca disse com todas as letras por que segurou o inquérito contra Demóstenes, deixando para pedir uma investigação contra ele somente este ano. Não fosse por sua postura, os integrantes do grupo de Cachoeira, inclusive o ex-senador, não teriam passado meses se comunicando livremente por seus aparelhos Nextel - a PF na extensão.
Ao falar a palavra "mensalão", que era de fato o sujeito oculto do que se passava no Congresso, Gurgel habilmente colocou os críticos na defensiva. Apesar do jeitão discreto, nesses 30 anos Roberto Gurgel se mostrou político e fez uma carreira consistente o bastante para levá-lo ao topo do Ministério Público Federal. A eleição de um governo de esquerda, em 2002, contribuiu para a ascensão.
Gurgel é uma das crias do "Grupo dos Tuiuiús", criado há duas décadas e marcado pela oposição à gestão do ex-procurador-geral da República Geraldo Brindeiro, nomeado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso em 1995 e que acabou ocupando o cargo por três mandatos consecutivos de dois anos. À época, Brindeiro tornou-se conhecido como o "engavetador-geral da República", por sua irresistível compulsão para guardar na gaveta eventuais processos contra os poderosos.
Na origem mais remota dos "tuiuiús" estão três procuradores, dos quais um chegou a ministro do Supremo e outros dois ao posto atualmente ocupado por Gurgel: José Paulo Sepúlveda Pertence, Aristides Junqueira (autor da denúncia, recusada pelo STF, contra o ex-presidente Collor, e duramente criticado por ela ter sido considerada "inepta") e Cláudio Fontelles, o primeiro procurador do governo recém-chegado de Lula. A turma se reunia no restaurante Rosental, na Vila Planalto, em Brasília, mantido pelo cozinheiro do ex-presidente Juscelino Kubitschek.
O "Grupo dos Tuiuiús" é assim chamado em referência às tentativas de Cláudio Fontelles de chefiar o MPF - sua candidatura era vista como "pesada e de voo baixo", a exemplo da ave símbolo do Pantanal Matogrossense. Esse, pelo menos, era o sentimento do próprio Fontelles. E FHC não abria mão do "engavetador".
Descontentes com a gestão de Brindeiro, os "tuiuiús" se organizaram para ocupar postos estratégicos do MPF, visando o cargo de procurador-geral. Quando Lula assumiu - e o PT era quem mais difundia críticas a Brindeiro -, convidou Cláudio Fontelles para o cargo.

Gurgel e Ayres Britto: procurador, considerado pelos colegas "cordialíssimo, extremamente leal, mas impenetrável", terá cinco horas hoje para apresentar provas contra cada um dos acusados

Lula queria reconduzir Fontelles a um segundo mandato, mas o procurador recusou a oferta para se manter fiel ao pacto tácito que servia de argamassa para a união dos tuiuiús: nenhum procurador deveria ficar mais de um mandato na chefia do MPF. Consultado, Fontelles sugeriu dois nomes: Antonio Fernando de Souza e o próprio Gurgel. Ao contrário de Fontelles, seu sucessor permaneceu por dois mandatos. Gurgel já está no segundo. Os tuiuiús voaram baixo em várias direções e acabaram se dividindo.
Os colegas procuradores não engoliram o fato de, às vésperas de Lula decidir se o reconduziria, Gurgel ter arquivado um pedido de investigação contra o ex-ministro da Casa Civil Antonio Palocci, cujo patrimônio aumentou 20 vezes durante quatro anos. Mas aplaudiram quando ele apresentou as alegações finais do mensalão, pedindo a condenação de 36 dos 38 réus. Gurgel não deixou outra alternativa a Lula a não ser mantê-lo no cargo. Aliás, ao ter sua recondução confirmada pelo Senado, Demóstenes Torres liderou o discurso contrário, usando o caso Palocci como argumento.
Na PGR, a liderança mais aberta de Cláudio Fontelles contrasta com o estilo mais discreto de Souza e Gurgel. O atual procurador geral é considerado "cordialíssimo, extremamente leal, mas impenetrável" pelos colegas. Uma das principais críticas é a falta de conversa com a categoria, e não ter levado adiante com liderança forte questões como negociação de demandas salariais.
Hoje, Gurgel será o foco das atenções. Terá cinco horas para apresentar provas contra cada um dos acusados - tempo de que só os ministros costumam dispor nas sessões.
A não ser que questões de ordem da defesa tomem o dia inteiro, Gurgel falará logo depois que o ministro Joaquim Barbosa ler seu relatório. Gurgel passou o mês de julho debruçado sobre o processo, treinando em casa o discurso da acusação.
Em junho, o procurador-geral chegou a confidenciar a ministros do STF que não usaria todo o tempo: "Ninguém aguenta falar por cinco horas." Durante as férias, enquanto advogados enchiam os gabinetes do Supremo de memoriais, Gurgel decidiu dar nova força à acusação - agora a expectativa é que poderá falar bastante.
Em jogo estará não só o destino dos réus envolvidos no maior escândalo do governo Lula, com todas as implicâncias políticas derivadas dele: o resultado do mensalão será a maior marca da gestão de Gurgel e terá efeitos na imagem do Ministério Público como instituição.
Eventuais condenações serão interpretadas como chancela, pela Corte Suprema, da qualidade do trabalho do procurador-geral. Por mais que uma sentença judicial beire as margens do imponderável, especialmente em um processo com tantas variáveis como o mensalão, uma absolvição generalizada resultaria em desgaste para o Ministério Público, como ocorreu com Aristides Junqueira no caso Collor. Além disso, volta e meia o MP é alvo de críticas no Congresso e seu poder de investigação criminal está em xeque no STF.
Quando assumiu a Procuradoria-Geral da República em julho de 2009, Gurgel defendeu o poder de investigação do Ministério Público como uma de suas principais bandeiras, que classificou como "condição essencial, imprescindível para o cumprimento pleno dos deveres constitucionais da instituição".
Uma ação judicial questionando esse papel começou a ser julgada este ano pelo Supremo, com a tendência de que as atuais atribuições do Ministério Público sejam mantidas, mas com a definição de alguns critérios. Embora este seja o caso mais importante para a categoria liderada por Gurgel, é o mensalão que entrará para a história como resultado de sua gestão.
Gurgel representa mil procuradores da República no Brasil inteiro e é o chefe maior do Ministério Público, que reúne 4 mil integrantes em todas as suas instâncias, nas esferas estadual e federal. Seu gabinete guarda processos contra 200 parlamentares com foro privilegiado e mais páginas e páginas de investigações que podem ou não virar novas ações judiciais. O procurador-geral tem, de fato, muito mais poder que sua postura "crepuscular" deixa transparecer.



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