Editorial O Estado de S.Paulo
Durante o julgamento, pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que determinou a aposentadoria compulsória de um juiz piauiense acusado de beneficiar advogados, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Joaquim Barbosa, recolocou na agenda do Judiciário um problema antigo: o risco de as relações de amizade entre magistrados e advogados resultarem em favorecimento de uma das partes e em tráfico de influência.
"O conluio entre juízes e advogados é o que há de mais pernicioso nos tribunais. Sabemos que há decisões condescendentes, absolutamente fora das regras", afirmou o ministro, depois de defender uma "limpeza" na instituição. Além de afetar o equilíbrio de forças no jogo judicial, a excessiva intimidade entre juízes e advogados é a origem de muitos casos de corrupção na Justiça, disse o presidente do STF e do CNJ. Semanas antes de assumir o cargo, no final de 2012, ele tocou no mesmo tema, criticando os filhos, cônjuges e sobrinhos de ministros dos tribunais superiores que advogam nas mesmas cortes de seus pais, maridos e tios. "Eles são contratados não pela qualidade de seu trabalho, mas pelas ligações de parentesco. Isso divide os advogados em duas classes: os que têm acesso privilegiado, podendo beneficiar os clientes, e os comuns, que não têm laços de sangue para favorecê-los", disse Barbosa na época.
Na última sessão do CNJ, o único conselheiro que discordou do presidente do STF e votou pela absolvição do juiz piauiense foi o desembargador federal Fernando Tourinho Neto. "Fui juiz no interior da Bahia, tomava uísque na casa de um, bebia cerveja na casa de outro e isso nunca me influenciou", afirmou ele, horas antes do vazamento acidental de e-mails que revelaram um pedido pessoal seu a outro membro do CNJ. Pelos e-mails vazados, Tourinho teria solicitado ao conselheiro Jorge Hélio - indicado pela advocacia - que apresentasse, com rapidez, parecer relativo a um pedido de sua filha, que é juíza federal e quer participar de um concurso de remoção. Ela pretende deixar a vara onde atua, no Pará, e transferir-se para Salvador. "Está chegando um requerimento de minha filha, e é urgente. Concedendo ou negando, despacha logo", pediu.
As associações de juízes reagiram às críticas do presidente do STF com evidente irritação. Elas afirmaram que, ao fazer críticas genéricas à magistratura, o ministro Joaquim Barbosa estaria ameaçando o Estado de Direito - o que é um exagero. Elas também fizeram críticas pessoais a Joaquim Barbosa. "Juiz não faz voto de isolamento social. Os juízes se formam em faculdades e ali fazem amizade para a vida toda", protestou o presidente da Associação dos Juízes Federais, Nino Toldo, depois de lembrar que a namorada de Barbosa é advogada em Brasília. "Como fica isso", indagou.
Relações promíscuas entre magistrados e advogados não são um problema novo no Judiciário. Já havia sido abordado, por exemplo, pela então corregedora nacional de Justiça, ministra Eliana Calmon - hoje vice-presidente do Superior Tribunal de Justiça e diretora da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados. No período em que integrou o CNJ, ela se destacou por condenar o tráfico de influência nos tribunais. Foi ela a primeira ocupante de um tribunal superior a denunciar o "filhotismo" na Justiça. Em várias entrevistas, Eliana Calmon afirmou que o problema não está na atuação de parentes de ministros nos processos judiciais, mas nas relações informais que ocorrem fora dos autos, quando se valem da amizade com um juiz, desembargador ou ministro para fazer lobby em favor de clientes.
É evidente que um familiar de um magistrado não pode ter o direito de advogar limitado pela simples suspeita de que será beneficiado. O problema levantado pela ministra Eliana Calmon, e agora retomado pelo ministro Joaquim Barbosa, é delicado e uma solução objetiva não é fácil de ser encontrada. O que o CNJ pode fazer, além de alertar a magistratura, é continuar aplicando sanções severas quando as denúncias de abusos forem confirmadas - como ocorreu no caso do juiz piauiense.