15/11/2013
As tentativas solertes de confundir são tantas que resolvi tirar um tempinho para redigir este decálogo (parece que ainda está na moda fazer decálogos). Lamentavelmente, porquanto - como muitos sabem - não acredito mais na velha política. É um tempo roubado das minhas tarefas mais criativas. No entanto, porque há uma questão democrática envolvida em tudo isso, fiz o sacrifício. Se vocês fizerem também o sacrifício de ler (não é muito curto), terão justificado o meu esforço.
1 - O PROBLEMA PRINCIPAL DO MENSALÃO NÃO É A CORRUPÇÃO
Chamou-se de mensalão a um esquema de compra de parlamentares e outros agentes públicos e privados comandado por altos funcionários do primeiro governo Lula e por dirigentes do Partido dos Trabalhadores. A palavra - cunhada pelo delator Roberto Jefferson - se referia à suposta periodicidade mensal dos subornos (o que não é fato). Tratou-se, aparentemente, de corrupção. Mas foi bem mais do que isso: o objetivo era capturar o Estado brasileiro e as instituições democráticas para que um grupo privado pudesse se prorrogar indefinidamente no poder falsificando na prática o princípio da alternância ou da rotatividade.
2 - O OBJETIVO DO MENSALÃO NÃO ERA ENRIQUECER INDIVÍDUOS
Os operadores do mensalão, sobretudo os seus chefes, não tinham o objetivo de enriquecer pessoalmente. Ainda que isso possa ter eventualmente acontecido aqui e ali, era uma tarefa partidária (delegada pela direção real do PT, que nunca coincidiu com sua direção formal ou legal).
3 - MENSALÃO NÃO É CAIXA 2
Não é verdade que o mensalão seja consequência do nosso imperfeito modelo de financiamento de campanhas eleitorais, porque o objetivo do esquema não era simplesmente eleitoral (formação de Caixa 2). As ações criminosas, em sua maior parte, foram praticadas em períodos não eleitorais. Eram ações permanentes, orientadas por uma estratégia maior de conquista de hegemonia no Estado e na sociedade. O mensalão configurou um inédito tipo de caixa - poder-se-ia dizer: um Caixa 3 - voltado ao financiamento de ações estratégicas legais e ilegais de uma espécie de Estado paralelo.
4 - NUNCA HOUVE OUTRO MENSALÃO NA HISTÓRIA DO BRASIL
Corrupção existe no Brasil desde as capitanias hereditárias e por isso se diz que há corrupção endêmica no país: os governos de todos os níveis são mais ou menos corruptos (ou praticam ou toleram a corrupção em maior ou menor grau), os partidos transigem mais cedo ou mais tarde com a corrupção e os agentes políticos são, em alguma medida, coniventes ou lenientes com a corrupção. Mas um esquema sistêmico - como o que foi revelado pelo processo do mensalão: pela sua abrangência, profundidade e organicidade, com comando centralizado e hierarquia operativa, com governança corporativa de holding, outsourcing e terceirização - é fato inédito na história do Brasil. Não houve nada semelhante na velha República, nem nos governos militares, nem no governo Sarney, nem no governo Collor, nem no governo Itamar, nem no governo FHC. Foi uma inovação introduzida pelo governo Lula. Caixa 2, sim, sempre existiu na maioria desses governos. Mas mensalão não foi caixa 2 e sim caixa 3.
5 - NÃO HOUVE UMA QUADRILHA ESPECÍFICA DO MENSALÃO
Embora o mensalão seja crime de quadrilha, não se formou uma quadrilha específica para praticar o mensalão. O núcleo da quadrilha já existia estruturado no partido há vários anos, como parte da estratégia de poder arquitetada por um conjunto de dirigentes partidários (que constituíam a direção de fato ou real do PT desde a década de 80). Essa estratégia teve como ponto de partida a constatação (errada) de que as elites que dominaram o país por vários séculos sempre lançaram mão de expedientes semelhantes para conquistar o poder e nele se manter e que, portanto, isso era uma espécie de imperativo da realpolitik. O erro não foi a constatação de que as elites praticaram a corrupção e sim de que elas teriam feito isso voluntariamente de forma sistêmica, em nome de uma causa ou propósito explícito e coordenado de modo centralizado; não, isso não era necessário porque o sistema era a própria corrupção institucionalizada e a corrupção dos chefes políticos - cada qual visando apenas seus próprios interesses egotistas - fazia parte desse mercado político que se autorregulava perversamente. A avaliação errada gerou um novo comportamento adaptativo (e por isso o mensalão como forma organizativa foi inédito). Com a vitória de Lula, a partir de 2003, o contingente dedicado a implementar a estratégia se deslocou para o centro do governo federal, instalando-se na presidência da República. O caso Waldomiro Diniz (assessor de Dirceu na Casa Civil) já era parte das ações da quadrilha.
6 - NÃO FOI O PT QUE PLANEJOU E EXECUTOU O MENSALÃO
A quadrilha não era o PT, se entendermos por isso o conjunto de filiados, dirigentes e instâncias formais do partido. Os que planejaram e executaram o mensalão eram uma parte dos que detinham o poder real no Partido dos Trabalhadores e que passaram a se organizar a partir da tendência originalmente chamada de Articulação dos 113, que tinha como chefes Lula e Dirceu. Sobretudo durante a década de 90, o PT foi profissionalizado - sob o comando operacional de Dirceu e seus seguidores - como uma máquina azeitada para servir de instrumento à estratégia de conquista (eleitoral) do poder e de retenção do poder (por todos os meios: eleitorais e não eleitorais, legais e ilegais) por prazo indeterminado.
7 - OS RÉUS DA AÇÃO PENAL 470 COMPÕEM UMA ÍNFIMA PARTE DOS CULPADOS PELO MENSALÃO
Os reus da Ação Penal 470 não representam nem 1% dos operadores da estratégia que veio parcialmente à luz com o nome de mensalão. Foram operadores da estratégia que - em parte - veio à luz com o nome de mensalão, todos os dirigentes e militantes subordinados à orientação do subconjunto do núcleo duro da tendência majoritária do PT que desenhou a estratégia. Esse contingente estava (e está) distribuído em instâncias do PT em todo o Brasil, nas instituições do Estado e do governo, em empresas estatais, fundos de pensão e, inclusive, em organizações privadas empresariais e sociais. Entenda-se bem: nem todos os membros desse contingente são mensaleiros. A estratégia é complexa e tem vários tipos de ações. Além disso, tal contingente não se confunde com o PT, nem com a imensa maioria de seus filiados, muito menos com seus eleitores fiéis (que nunca souberam de nada disso).
8 - O VERDADEIRO BENEFICIÁRIO DO MENSALÃO NÃO FOI PROCESSADO
O chefe supremo do núcleo duro da tendência majoritária do PT - embora tenha sido objetivamente o maior beneficiário do mensalão - não foi sequer indiciado, muito menos processado.
9 - OS DIRIGENTES CONDENADOS PELO MENSALÃO CONTINUAM NA DIREÇÃO REAL DO PT
Os atores políticos condenados pelo mensalão não são ex-dirigentes do PT (como se noticia), mas continuam, em parte, na direção real do partido: são assim acatados por quase todos e, ademais, reverenciados como grandes líderes pela militância mais aguerrida. Continuarão, ao que tudo indica, exercendo seu papel dirigente dentro da cadeia. Continuarão, estejam onde estiverem, articulando e operando a estratégia que vazou, em parte, em razão da denúncia do mensalão. E continuarão sendo obedecidos por um grande contingente de petistas, de lulistas e de seus aliados estratégicos.
10 - A ESTRATÉGIA QUE ENSEJOU O MENSALÃO CONTINUA VIGENDO
As justificativas apresentadas pelos condenados indicam que eles não estão arrependidos. As declarações ríspidas e os gestos agressivos (como o punho levantado) são um sinal de que eles acham que estão certos e de que fariam tudo outra vez. E indicam também que a estratégia que ensejou o mensalão continua vigendo. Quando reclamam que nada fizeram e que tudo não passou de um golpe das elites, isso não é apenas uma alegação de autodefesa e sim uma tática derivada da mesma estratégia de hegemonização das instituições do Estado e da sociedade com objetivos de retenção do poder em mãos de um grupo privado por longo prazo. Ao caracterizar todos os que não estão sob seu controle ou que põem reparos à sua atuação como "elites", "direita", "conservadores", essa tática visa demarcá-los como alvos de sucessivas campanhas políticas de difamação, isolamento, cerco e aniquilamento (da sua condição de atores políticos válidos perante a sociedade em uma democracia).
Enfim... o grande problema do mensalão não é a velha corrupção. Antes fosse! O dinheiro desviado não era para a locupletação de indivíduos e sim para financiar uma guerra (na 'formule-inverse' de Clausewitz-Lenin: a política como continuação da guerra por outros meios) cujo objetivo é destruir os inimigos capazes de impedir a degeneração institucional necessária e funcional para que um grupo privado possa reter autocraticamente o poder em suas mãos por prazo indeterminado, usando a democracia (notadamente as eleições) contra a própria democracia. O mensalão, portanto, é apenas a parte que veio à luz de uma estratégia maior de enfreamento do processo de democratização no Brasil. Foi, definitivamente, um atentado à democracia (como, aliás, perceberam - e declararam nos autos - os ministros do Supremo Tribunal Federal, Carlos Ayres Britto e Celso de Mello).