Mais um pouco de Pikettysmo, mas serio e bem feito - Carlos Goes (Mercado Popular)
Diplomacia e Relações Internacionais

Mais um pouco de Pikettysmo, mas serio e bem feito - Carlos Goes (Mercado Popular)


O Piketty é pop

Entenda o livro de economia mais badalado do século, seus acertos e seus erros.
“Capital in the Twenty-First Century”, de Thomas Piketty. (Harvard University Press, 2014, 685 páginas)
É estranho pensar que um livro de teoria econômica de 700 páginas está entre os dez livros mais vendidos da Amazon. Capital no Século XXI, o novo livro do francês Thomas Piketty, colocou os centros intelectuais dos Estados Unidos de pernas para o ar. Ao capitalizar sobre um tema central da política americana no momento – o aumento da desigualdade econômica – o livro foi alçado para o topo das listas de mais vendidos. Essa excêntrica popularidade tornou Piketty um rockstar da noite para o dia e faz do seu Capital o livro mais importante de economia do século – ao menos até agora.

As contribuições e a tese de Piketty

Não acredite em quem diz que Piketty (ou seu livro) não é sério. O catálogo empírico que relata tendências de (des)igualdade social nos últimos 300 anos é uma contribuição importantíssima para a história econômica. O autor organizou dados dos fiscos nacionais de diversos países para estimar qual porcentagem da renda nacional (ou seja, de tudo aquilo que é produzido por uma sociedade durante um ano) é retida pelos diversos estratos sócio-econômicos.
De fato, o Capital é muito mais um compêndio estatístico e um relato de história econômica que um livro de teoria. Sua parte teórica é, contudo, intrigante.
Para lançar as bases de sua teoria, Piketty analisa como a renda nacional é divida entre dois insumos essenciais ao processo produtivo: capital e trabalho (chamados em economês de “fatores de produção”). Essa divisão entre capital e trabalho não é, como pode soar, algo tipicamente marxista. É uma tradição que se estende desde os economistas clássicos como Smith e Ricardo e, com tons e perspectivas diferentes, passa por Marx, Mises, Friedman e Keynes. É também algo comum em qualquer curso de graduação em economia (para os curiosos, veraqui).
É importante entender que a remuneração, tanto do capital quanto do trabalho, está ligada à produtividade de cada um desses “fatores”. Quanto maior a produtividade de um trabalhador (ou seja, quanto mais ele produz e quão maior a qualidade de seu produto ou serviço por cada hora de trabalho), maior tende a ser seu salário. Igualmente, quanto maior for o valor do produto (ou serviço) que cada unidade de capital (uma máquina, um computador, um prédio) produz, maior vai ser a remuneração de quem é o dono daquele capital.
Sobre essa base, que é consenso na economia, Piketty constrói uma tese polêmica. O argumento, de forma bem simplificada, é: como os rendimentos [r] do capital (imóveis, ações, máquinas, títulos de dívida, conta de poupança no banco, etc.) tendem a ser maiores do que o crescimento da produtividade dos trabalhadores [g], os donos dos bens de capital vão ver sua riqueza aumentar mais rapidamente que o resto da população. (Na verdade, g inclui o crescimento populacional e o crescimento da produtividade, mas o crescimento populacional futuro vai se aproximar a zero, tornando essa variável menos relevante).
E como a renda do capital é muito mais concentrada do que a renda do trabalho, se r > g, a consequência seria um aumento da desigualdade de renda. Outra consequência dessa premissa (r > g) seria que a quantidade total de riqueza acumulada (nas mãos de poucos) aumentaria. Com essa dupla desigualdade (de renda e de riqueza), a mobilidade social seria restringida, uma vez que a renda presente passaria a ser menos relevante frente à riqueza herdada.
O autor relata que uma classe não-meritocrática de herdeiros que não trabalharam por suas fortunas era comum no século XIX. Piketty vai além, ao afirmar que esse movimento de concentração (impulsionada pelo suposição de que r > g) é uma tendência inerente à economia capitalista. Ela teria sido revertida no século XX por situações extraordinárias (guerras mundiais, crescimento populacional alto e “impostos confiscatórios”, nas palavras do autor), mas voltará a ser uma realidade no século XXI.

O principal problema da tese de Piketty

Existe um problema muito grande na tese de Piketty. Ele (quase) desafia uma das relações mais constantes na economia: a lei dos retornos marginais decrescentes. Essa relação não é muito difícil de ser compreendida.
A lógica é simples: do mesmo modo que aquele bem mais escasso em relação a outros bens tende a ter um preço mais alto no mercado, quanto mais escasso o fator de produção (capital ou trabalho), maior tende a ser a sua produtividade (e, por consequência, sua remuneração).
Pense da seguinte maneira.
Você tem uma empresa de jardinagem e corta gramados por aí. Você tem dois funcionários e uma máquina de cortar grama. Os funcionários trabalham de oito da manhã até seis da tarde, revezando-se em turnos de uma hora. Eles recebem uma comissão por cada casa que tem sua grama cortada. Nesse cenário, a máquina vai ser utilizada por 10 horas sem parar e cada trabalhador vai ter 5 horas de produtividade.
O que acontece se você comprar uma outra máquina de cortar grama (um unidade extra de capital)? Seus trabalhadores vão continuar trabalhando de oito às seis. Mas agora eles não precisam se revezar na máquina. Vão tirar suas necessárias duas horas de almoço e trabalhar de oito ao meio dia e de duas às seis.
Nesse novo cenário (com o aumento de capital), a produtividade média dos trabalhadores aumenta de 5 para 8 horas por dia. Você vai poder atender mais casas, aumentar a comissão de seus funcionários e ainda assim ganhar mais dinheiro.
Mas se antes a máquina funcionava dez horas sem parar, agora cada uma delas fica ociosa durante duas horas. A produtividade média por cada máquina caiu de 10 para 8 horas por dia. Embora você e seus funcionários ganhem mais dinheiro no total, o seu retorno pelo investimento feito em cada máquina (a “remuneração do capital”) vai ser menor.
Se a quantidade de capital acumulado aumentar, como Piketty prevê, a produtividade dos trabalhadores (g) deve aumentar e os retornos ao capital (r) devem diminuir. Com o estoque de capital aumentando, em algum momento [r] vai ser igual a [g]. E se a quantidade de capital crescer demais, a relação se inverte de tal modo que r < g! Parece difícil justificar as previsões de baixo crescimento da produtividade dos trabalhadores em um mundo com uma disponibilidade de capital tão grande quanto Piketty argumenta que o século XXI terá – em especial em um mundo em que o crescimento populacional, como o autor ressalta, deve estagnar.
O francês reconhece, em bom economês, que “é natural esperar que a produtividade marginal do capital diminua à medida que o estoque de capital aumenta” (p. 215). Mas acha que o ritmo dessa diminuição vai ser bem lenta. Se os capitalistas tiverem muita facilidade em substituir trabalhadores por bens de capital (como Piketty acha que eles têm), o aumento da quantidade de capital vai ser mais rápido que a diminuição da sua rentabilidade, o que implicaria que uma parcela maior da renda nacional ficaria com os proprietários e uma parcela menor com os trabalhadores.
Na lógica de Piketty, segue-se o ciclo: mais capital, mais renda para os mais ricos, mais desigualdade, menos mobilidade social. QED (dito latino para “como foi demonstrado”). Mas…ele demonstrou isso mesmo?
Qual o problema nessa lógica? Apesar de trazer um compêndio estatístico muito amplo, as evidências que ele apresenta em apoio à sua tese são bem escassas. Elas não passam de uma correlação aparente. Tão importante quanto isso, uma boa parte dos economistas que estuda essa velocidade de substituição entende que ela era até hoje superestimada, e não subestimada como afirma Piketty. (Para quem gosta de economês, o jargão para se referir a essa relação é “elasticidade de substituição entre o capital e o trabalho”.)
Quando se testa uma teoria, ela precisa passar por um duplo teste da razão. O primeiro testa a coerência interna de uma teoria – e nesse teste a tese central de Piketty passa, pois o francês trabalha sobre um quadro de análise já bem familiar à economia. O segundo é o de consistência externa, isto é, provar que as premissas teóricas são de fato verdadeiras – e nesse teste o novo popstar da economia não chega a passar.

Problemas adicionais da análise de Piketty

Uma das análises recorrentes no Capital é o argumento de que um aumento na desigualdade tende a criar uma aristocracia que vive de rendas e não de seu próprio trabalho – ou seja, que é rica por ter herdado uma fortuna e não por ter construído sua própria fortuna. A lógica faz algum sentido. Quanto maior parte da renda nacional fica com o donos do capital e quanto maior o estoque de riqueza acumulado, mais difícil é alguém se alçar à condição de rico e a riqueza herdada passa a ter mais relevância. Assim era o mundo no século XIX. E, traçando um paralelo com o século XIX, Piketty conclui que o atual aumento da desigualdade necessariamente levará a uma falta de mobilidade social.
Mas isso é sempre verdade? Ainda que o 1% mais rico de 2014 tenha uma parcela maior da renda do que o 1% de 1980, isso não significa que as pessoas que eram o 1% mais rico em 1980 (ou seus descendentes) continuem a ser os mais ricos em 2014.
Na verdade, existe uma volatilidade grande quanto a quem faz parte de cada uma das camadas de renda na sociedade. Os economistas Mark Rank e Thomas Hirschl, após acompanharem dados de renda das mesmas pessoas durante 40 anos, chegaram a uma impressionante conclusão: 73% dos americanos passaram ao menos um ano dentre os 20% mais ricos; 56% dentre os 10% mais ricos; 39% dentre os 5% mais ricos; e 12% entre o 1% mais rico. As pessoas experimentam tanto riqueza quanto pobreza no curso suas vidas, o que indica não uma elite estática, mas uma significativa mudança quanto a quem ocupa o vértice (e a base) da pirâmide de renda em momentos distintos.
Outro método de verificar essa mesma volatilidade é olhando a lista dos mais ricos do mundo publicada pela revista Forbes. O banco Credit Suisse analisou essa persistência e verificou que, à medida que o tempo passa, a maioria dos ricaços é substituída por novos ricaços (veja o gráfico abaixo), o que enfraquece a tese de Piketty de uma aristocracia estática controlando a sociedade do topo. A desigualdade pode estar aumentando, mas não necessariamente a mobilidade social está acabando.
Um segundo ponto que Piketty acaba ignorando é que, segundo seus próprios dados, quase a totalidade do aumento do capital a partir dos anos 1980 decorre do aumento do valor total das habitações. Como o autor reconhece, esse processo ocorreu simultaneamente ao surgimento do que ele chama de “classe média patrimonial” (p. 186). Se no século XIX a classe média (os 40% do meio da distribuição de renda) quase não tinha riqueza alguma, atualmente ela detém quase um terço do capital nacional nos países desenvolvidos.
À medida que as cidades cresceram e as pessoas enriqueceram, o valor total dos imóveis subiu muito, já que é impossível criar novas habitações nas rígidas cidades europeias. Sendo parisiense, Piketty deveria saber disso muito bem.
Se excluirmos a habitação do capital total, praticamente não houve mudança alguma (como você pode ver no gráfico abaixo, feito com os dados de Piketty) no estoque total de capital. Fazendo essa distinção, ao invés do infactível imposto global sobre a riqueza que Piketty propõe, talvez faça mais sentido buscar políticas que facilitem a construção de novos imóveis,desregulamentando os códigos urbanos e facilitando a verticalização – como argumenta Tyler Cowen.

O julgamento fundamental: pobreza ou desigualdade?

Essa discussão deságua em um ponto fundamental. O que é mais importante: combater a pobreza ou a desigualdade? O Nobel de economia Robert Solow levanta essa bola em suabrilhante resenha sobre o livro de Piketty:
Você preferiria viver em uma sociedade em que o salário real está aumentando rapidamente mas a parcela do trabalho [na renda nacional] está diminuindo … ou uma em que o salário real é estagnado … e a parcela do trabalho não se altera? A primeira é certamente preferível em termos estritamente econômicos: você come seu salário, não sua parcela na renda nacional. Mas pode ser que haja vantagens sociais e políticas decorrentes da segunda opção.
Por que o livro de Piketty fez tanto sucesso? Uma resposta possível é que, hoje, os EUA vêem um aumento na desigualdade que não se observava há muito tempo – e isso cria conflitos sociais. Outra resposta – que para mim parece mais razoável – é entender que a renda mediana e os níveis de pobreza nos EUA pararam de melhorar. Na década de 1990, enquanto a renda aumentava e a pobreza diminuía, não havia percepção de conflito social – a despeito do aumento da desigualdade.
Nos países desenvolvidos, os seis anos de baixo crescimento econômico deixaram sequelas que levam a conflitos sociais – pois o aumento dos salários estagnou. O foco talvez deva se dar mais no “g” do que no “r” de Piketty. O crescimento econômico é inclusivo desde que os pobres estejam vendo suas vidas melhorarem. Afinal, os pobres comem mais e vivem melhor quando sua renda aumenta, e não quando uma estatística nas tabelas dos economistas muda.
A despeito do tom apocalíptico de muitos dos entusiastas do livro de Piketty, numa perspectiva global as coisas estão melhorando significativamente: esteja você interessando na pobreza ou na desigualdade. A pobreza cai ininterruptamente desde a década de 1980 (veja gráficos abaixo) e temos tudo para testemunhar o virtual fim da pobreza absoluta no mundo no decurso de nossas vidas.
Por causa do forte crescimento na Índia e na China, mais de um bilhão de pessoas foram alçadas ao mercado de consumo e, acredite, a realidade é que a desigualdade mundial está caindo. Taxas altas de poupança e acumulação de capital levaram a um maior crescimento econômico e à inclusão social através da eliminação da pobreza. E, ao contrário de alguns conceitos obscuros de macroeconomistas, a pobreza não é uma estatística nas tabelas de burocratas. Ela ainda mata gente de fome todos os dias.
Apesar das críticas acima, o livro de Piketty é uma grande obra e merece ser lido por todo estudante de economia. Mas ele só conta um lado do problema. Ele confirma que maior poupança e menor consumo presente leva à maior acumulação de riqueza futura. Mas tem uminsight posterior: para que os pobres se beneficiem mais dessa acumulação, eles também precisam poupar – caso contrário os efeitos distributivos do crescimento econômico não vão ser equitativos. Sua maior lição é que precisamos dar acesso aos trabalhadores à renda do capital. E eu adiciono: devemos fazê-lo sem sacrificar o crescimento e a redução da pobreza.
A maior lição não-explícita que há no livro de Piketty é: precisamos aburguesar o proletariado.
texto publicado inicialmente no Mercado Popular.



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