Que a coca seja uma planta de propriedades possantes, ninguém duvida. Mastigada, a folha dessa árvore baixinha - uma dádiva da Pachamama, o nome indígena aimará para a Mãe-Terra - há milênios ajuda a espantar a fome e a fadiga. Triturada e composta com a química certa, produz cocaína. Agora, graças ao candor de um graduado juiz boliviano, ficamos sabendo que a coca também serve como acessório de jurisprudência.
Esta semana, Gualberto Cusi, magistrado da Corte Constitucional, revelou a uma emissora de televisão de seu país como resolve casos difíceis. "Quando o caso é complexo, jogo um punhado de folhas de coca em uma manta", explica. Dependendo de como elas caem, revela-se o veredicto. "Na coca, sai!", disse.
Não foi piada. O depoimento de Cusi causou celeuma nacional, incluindo colegas dos tribunais. "Absolutamente todos os magistrados, entre eles o doutor Gualberto Cusi, devem seguir estritamente a Constituição e a regra jurídica aplicável na resolução das causas", reagiu Ruddy Flores, presidente do Tribunal Constitucional. A oposição política clamou pela renúncia de Cusi enquanto Jaime Navarro, do Partido Unidade Nacional, lamentou que a "Justiça está nas mãos da coca".
Mas, na Bolívia, a doutrina é outra. A Bolívia não é mais uma república unificada. É um "Estado plurinacional". A distinção parece pequena, mas no fundo significa que há nações distintas dentro do território boliviano. Todas elas informam e pautam as regras da vida nacional. Assim, na reforma judicial de 2009, mudou-se o sistema de selecionar juízes.
Hoje, as vagas nos diversos tribunais são preenchidas com juízes eleitos pelo voto direto, entre eles a Corte Constitucional, que tem como missão interpretar as leis máximas do país. Portanto, o doutor Gualberto Cusi, não é doutor, muito menos juiz. E nem precisa ser. É um líder comunitário, de origem aimará, diplomado por sua popularidade entre a maioria indígena, com uma forcinha da Mãe-Terra.
Cusi leva seu mandato a sério. O mais votado do pleito, brigou para ser indicado presidente do tribunal. Agora briga para justificar o injustificável. Surpreendido com a tempestade que criou, ensaiou um desmentido, dizendo que o tema não deve ter "essa transcendência". Mas não se retratou.
"A coca não é uma simples planta. Para nós, os aimarás, é um símbolo de resistência à opressão, contra o imperialismo", disse. "Por meio da coca nos comunicamos com a Pachamama."
Assim, admite consultar a coca "não para decidir uma sentença" senão para saber "se estamos sendo justos, corretos e definitivamente guiar-nos pelo caminho harmonioso e de paz social". De quebra, atribuiu a reação às suas declarações ao preconceito "da gravata contra o poncho".
Quando Evo Morales assumiu o poder em 2006, prometeu a refundar o país para expurgar séculos de injustiça social, convidando a maioria pobre e indígena a ocupar o poder. Sócio do socialismo do século 21, seguiu a cartilha do venezuelano Hugo Chávez.
Com sua maioria no Congresso e o estilo rolo compressor (a multidão governista barrou a entrada da oposição na assembleia) refez a Constituição. A Constituinte reinventou a Justiça, um sistema que Evo Morales alegou ser comprometido pelo compadrio elitista.
Teve certa dose de razão. Antes, os magistrados, embora diplomados, eram escolhidos pelo Congresso, deixando a Justiça vulnerável à agenda política partidária. O presidente Evo conseguiu piorá-la, abrindo caminho para a crendice togada.
Esta semana, em uma conferência em Viena, enquanto Gualberto Cusi se explicava aos compatriotas, o presidente Evo Morales fez apaixonada defesa da coca como patrimônio nacional da Bolívia. Ele ainda exortou seus magistrados a cumprir "o grande desafio" de "exportar a Justiça boliviana". Haja folha.