Instituto Millenium reproduz meu artigo sobre a saida diplomacia companheira
Diplomacia e Relações Internacionais

Instituto Millenium reproduz meu artigo sobre a saida diplomacia companheira


Retorno a uma diplomacia normal?

Os companheiros no poder praticaram o que eles mesmos designaram como sendo uma “diplomacia ativa, altiva e soberana”. Sua primeira tarefa, em 2003, foi denegrir a anterior, considerada – como, de resto, as demais políticas – manchada pela submissão ao império, pela adesão voluntária às regras perversas do “Consenso de Washington” e por vários outros pecados, no contexto da “herança maldita” que teriam recebido do governo precedente. Eles passaram a orientar a nova política externa por outros critérios: alianças estratégicas com supostas potências anti-hegemônicas, sonhos de “mudar as relações de força no mundo”, construir uma “nova geografia do comércio internacional” e manter relações preferenciais com os países do Sul, numa pouco disfarçada oposição ideológica ao império e às grandes potências hegemônicas.

Qual foi o resultado dessa agenda ativíssima? Certamente a ampliação da presença brasileira no mundo, nem sempre com os resultados esperados, mas sempre em benefício de alguns parceiros privilegiados pelos companheiros: alguns regimes deploráveis na região e outros aliados pouco democráticos alhures. Nenhuma das principais prioridades – reforço do Mercosul, obtenção de uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU, conclusão bem-sucedida da Rodada Doha – foi alcançada, mas é claro que nem todas dependiam do Brasil. A que dependia, o Mercosul, retrocedeu de bloco comercial a mero agrupamento político em pouco tempo, e sua ampliação se fez à custa de seus fundamentos. Enfim, poder-se-ia continuar por vários outros fracassos companheiros, mas agora a hora é de olhar para a frente e ver o que poderia ser feito para corrigir alguns dos equívocos dos últimos três governos na frente externa.

Uma diplomacia econômica focada em resultados concretos reduziria o absurdo protecionismo comercial, trabalharia para reinserir o Brasil nas grandes redes globais de integração produtiva e redefiniria completamente nossa política comercial externa

Em primeiro lugar, caberia restabelecer a dignidade e a credibilidade da política externa e da diplomacia profissional, afetadas por uma formidável confusão com a – na verdade, submissão à – diplomacia partidária, um ajuntamento anacrônico de velhos mitos esquerdistas e de ações e iniciativas que se desenvolveram à margem de, até contra, antigas (mas válidas) tradições do Itamaraty: não intervenção nos assuntos internos dos outros Estados, observância dos tratados, condução técnica dos temas da agenda e, sobretudo, avaliação isenta dos interesses nacionais em oposição a qualquer tratamento ideológico das relações exteriores. Em segundo lugar, corrigir a miopia sulista, por uma política externa multidirecional e centrada em objetivos concretos, não em ilusões anti-hegemônicas, que, aliás, não são correspondidas por esses supostos aliados estratégicos. Em terceiro lugar, honrar alguns princípios constitucionais brasileiros que parecem ter sido esquecidos nos últimos tempos, como a adesão integral aos valores da democracia e dos direitos humanos e a rejeição absoluta do terrorismo como arma política (e aqui estamos falando da própria região, não de fundamentalismos médio-orientais).

Mesmo quando se admite ter sido a diplomacia ativa importante para colocar o Brasil no mapa do mundo – e os 27 doutorados honoris causa concedidos ao chefe da pirotecnia diplomática estão aí para provar isso mesmo -, deve-se reconhecer que a política econômica externa dos companheiros contribuiu ativamente para retrair o Brasil no índice das liberdades econômicas, fazê-lo retroceder nos rankings de competitividade internacional e aumentar suas fragilidades comerciais, com uma queda na pauta exportadora manufaturada e uma dependência quase colonial do novo primeiro parceiro externo. Uma diplomacia econômica focada em resultados concretos reduziria o absurdo protecionismo comercial, trabalharia para reinserir o Brasil nas grandes redes globais de integração produtiva – abandonando o atual retorno ao stalinismo industrial da era militar – e redefiniria completamente nossa política comercial externa, a começar pelo Mercosul e demais esquemas de integração regional. O tratado do Mercosul, não custa lembrar, começa por proclamar objetivos de liberalização comercial e de abertura econômica, não foi exatamente concebido para criar novas utopias sociais.

Em relação a certos sonhos de grandeza, é muito provável que a sociedade brasileira não veja na obtenção de uma cadeira permanente no Conselho de Segurança uma alta prioridade nacional, a despeito de esse tema provocar orgasmos em alguns diplomatas. As grandes “alianças estratégicas” com certos parceiros escolhidos a dedo também precisariam ser revistas, em função estritamente do interesse nacional, não de um desejo pouco secreto de enfrentar a “arrogância imperial”, disfarçada como uma tentativa de “democratizar as relações internacionais”. Algumas iniciativas de escassa racionalidade econômica – o Banco do Sul, cujo parto vem sendo feito a fórceps, e o Banco dos Brics, um grande negócio para os chineses – teriam igualmente de ser medidas sob o diapasão de sua utilidade efetiva.

No plano do relacionamento bilateral há muito que mudar, dada a natural propensão dos companheiros a certas preferências políticas que servem mais às idiossincrasias ideológicas dos que estavam no poder do que a uma agenda equilibrada moldada pelo profissionalismo do Itamaraty. Um exame cuidadoso do perfil geográfico da diplomacia brasileira poderá ajudar nessa tarefa.

Por fim, caberia restabelecer de verdade a soberania nacional, deixando, por exemplo, de servir a governos estrangeiros de duvidosa reputação democrática com empréstimos secretos e outros mimos financeiros retirados do orçamento público. O Senado deve recuperar suas prerrogativas institucionais, voltando a examinar com todo o cuidado operações que envolvam recursos nacionais – como um inacreditável Fundo Soberano que jamais deveria ter existido -, como, aliás, determinado na Constituição.

Fonte: O Estado de São Paulo, 15/10/2014

SOBRE PAULO ROBERTO DE ALMEIDA

Diplomata, mestre em planejamento econômico pelo Colégio dos Países em Desenvolvimento da Universidade de Estado de Antuérpia, doutor em ciências sociais pela Universidade de Bruxelas. Trabalhou como assessor especial no Núcleo de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. É autor dos livros: “O Mercosul no contexto regional e internacional” (Aduaneiras, 1993), “ O Brasil e o multilateralismo econômico” (Livraria do Advogado, 1999), “ Relações internacionais e política externa do Brasil: história e sociologia da diplomacia brasileira (UFRGS, 1998)” e “O moderno príncipe – Maquiavel revisitado” (2007)



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