O Estado de S.Paulo, 15 de setembro de 2012
Quem teve o cuidado, ou interesse, de acompanhar os votos dos diferentes ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento do "mensalão" percebeu com toda a clareza que a conduta criminosa dos acusados resultou de um emaranhado de ilícitos praticados em conjunto. Como por essa conduta foram já condenados alguns dos envolvidos, mas os ilícitos se comunicam também em relação aos outros, forçoso é concluir que novas condenações poderão ocorrer, quem sabe até mesmo a do ex-deputado José Dirceu, mas jamais o principal responsável de todos, aquele que nada viu, de nada sabia e não tinha nada que ver com coisa alguma.
Como diria um pescador, o Supremo vem demonstrando que é tempo bom para pescar peixes pequenos, mas não aquele peixão maior, cuja responsabilidade por não ter sido denunciado deve ser necessariamente debitada ao Ministério Público. Não se diga que não havia provas suficientes para envolvê-lo na denúncia, porque o voto do ministro Cezar Peluso - o último de sua carreira - foi extremamente esclarecedor quanto à suficiência, nos processos penais, de indícios seguros para justificar condenações.
O julgamento de Peluso, naquela oportunidade, mereceria ser reproduzido nas aulas das Faculdades de Direito, pela forma extraordinária, didática e lúcida como demonstrou ser não apenas possível, como necessário aceitar tão somente os indícios, quando se mostram suficientes para a condenação. Ou seja, mesmo quando não existem provas diretas, concretas ou documentais, mas os indícios apontam claramente a autoria e a conduta criminosa, não pode o juiz deixar de fixar as condenações. É o que vem ocorrendo no julgamento em questão.
Mas como fica a situação do peixão maior, aquele que não sabia que dinheiro público, ali, debaixo de seu nariz, e em grande volume, era distribuído a políticos aliados? E com que finalidade? É até vergonhoso ter de lembrar fato tão desmoralizador para a nossa incipiente democracia: essa verba suja, corrompida, se prestava a amolecer o coração dos políticos aliados e, dessa forma, fazê-los votar a favor dos projetos de interesse do grupo incrustado no Palácio do Planalto.
Parecia estar em curso um tenebroso processo político de dominação, urdido nas sombras e para ser desenvolvido a qualquer preço, mesmo o de desmoralização da democracia e do regime de livre-iniciativa, porque o sonho maior do grupo seria a estatização progressiva, embora nada inteligente, que afundou outros países, entre eles a infeliz Cuba. Não há dúvida de que o partido que chegou ao poder com o peixão maior à frente não tinha compromisso algum com a retidão e a lisura nos negócios públicos, nem mesmo com a democracia sem corrupção que a maioria deseja.
Era preciso ter dinheiro sobrando para pôr em andamento o projeto político. Como tudo lhes parecia ser muito fácil, e o dinheiro pipocava de todos os lados, acabaram se descuidando e não previram que um aliado, favorecido de forma não adequada ou, quiçá, a menor, iria dar com a língua nos dentes. Então o castelo de cartas desmoronou, mas, incrivelmente, sem que a conduta do peixão maior fosse considerada e resultasse na sua inclusão como acusado. Pegaram-se alguns peixes miúdos, talvez caia na rede também aquele segundo grandão, mas o maior de todos está por aí, volta e meia dando uma estilingada nos julgadores. Ou, quem sabe, rindo de nós.
Os romanos, sempre muito pragmáticos, costumavam definir as responsabilidades delituosas como culpa in vigilando e culpa in eligendo, isto é, culpa pela omissão no dever de acompanhar a conduta de quem lhe é subordinado e culpa pela escolha errada. Percebe-se que o principal articulador do grupo, nomeado chefe da Casa Civil pelo maioral, não foi devidamente vigiado. Já por isso o chefão não poderia ter ficado de fora, uma vez que os delitos se aperfeiçoam por ação ou por omissão.
Nesse quadro de ação jurisdicional para punição dos culpados não se pode deixar de reconhecer a incrível coerência do relator, ministro Joaquim Barbosa. Desde o primeiro dia de julgamento Barbosa mostrou absoluta segurança a respeito de suas conclusões jurídicas e não deixou dúvida quanto à sua disposição de julgar com absoluta independência.
A sua desenvoltura no julgamento, proporcionando-lhe destaque incomum na vida de um juiz, tornou mais confortável a leitura dos votos pelos demais ministros que o seguiram. Mesmo o ministro Ricardo Lewandowski, que no primeiro dia absolveu um dos réus por ausência de provas, deve ter ficado um tanto incomodado com a circunstância de os demais juízes admitirem a condenação, com as mesmas provas, o que significou contrariá-lo e deixá-lo vencido.
Joaquim Barbosa nunca foi considerado um juiz de primeira grandeza, mas isso se deve muito mais ao seu temperamento nada fácil do que à sua competência para os julgamentos. Por questões pouco relevantes ele se desentendeu com vários do integrantes do STF e chegou ao ponto de dizer que estava sendo diferenciado em razão de sua cor.
A conduta na vida privada também contribuiu para um certo abalo na sua imagem, o certo, porém, é que por força de seus votos no caso do "mensalão" ele impõe uma segurança e uma firmeza que a que a Nação toda assiste e aplaude. Não pelas condenações em si, mas pela forma direta e consistente dos votos, graças aos quais projeta imagem pública raramente alcançada por outro magistrado.
É forçoso também reconhecer que a denúncia elaborada pelo Ministério Público, muito embora tenha deixado de fora o peixão maior, demonstra estar muito bem trabalhada e instruída, ou seja, vê-se que houve dedicação, seriedade e coerência, bem como claro propósito de fazer cumprir a lei.