José Augusto Carvalho*
| 03/04/2012
Senhor procurador,
Escrevo-lhe esta carta porque soube que o Sr. entrou com ação na Justiça requerendo a imediata retirada de circulação, suspensão de tiragem, venda e distribuição do dicionário Houaiss, porque no verbete “cigano” há acepções ao seu ver carregadas de preconceito ou xenofobia, apesar da informação explícita no dicionário de que tais acepções são pejorativas. Para o Sr., o texto do verbete afronta a Constituição Federal e pode ser considerado racismo. É para ajudá-lo nessa importante tarefa de cortar as afrontas linguísticas à Constituição da República que lhe escrevo esta carta aberta, na esperança de que ela lhe chegue às mãos.
Há, na língua portuguesa e consequentemente nos dicionários, outros verbetes racistas e preconceituosos que afrontam nossa Carta Magna, como “judiar”, “judiaria”, “judiação”, uma verdadeira apologia ao antissemitismo. Portanto deve-se igualmente requerer que a Justiça mande suprimir do Houaiss e de tantos outros dicionários também o verbo “denegrir” que é um acinte aos afrodescendentes por sua significação pejorativa. Por que o luto tem de ser preto? Envie-se então uma mensagem ao Congresso Nacional para que faça uma lei que proíba a cor negra para o luto. Mande-se retirar também dos dicionários o verbete “mulato”, que se origina do nome “mula” e é uma ofensa também aos que têm a cor da Gabriela de Jorge Amado. Aliás, também deve ser eliminada dos dicionários a expressão “eminência parda”, por sua conotação negativa que agride os que são pardos.
Seria bom também retirar do dicionário o verbete “esquimó”. Na língua do povo mongólico que habita as regiões geladas da Groenlândia, Canadá e Alasca, a palavra “esquimó” significa “comedor de carne crua”, o que é altamente ofensivo para esse povo que prefere ser chamado de “inuit”, que quer dizer “povo”. Os esquimós, digo, os inuits, também merecem o nosso respeito, embora morem longe do Brasil.
Por que não mandar suprimir todos os palavrões dos dicionários? Imagine-se um adolescente ou uma criança que, ao abrir o Houaiss ou o Aurélio, encontre um palavrão desses cabeludos que fariam enrubescer uma freira de pedra. Trata-se de pornografia explícita que deve ser extirpada.
Aliás, por que as notas musicais pretas são de menor valor que as brancas? Trata-se de racismo velado, já que uma semifusa, por exemplo, toda pretinha, vale bem menos que uma semibreve, toda branquinha. Mande-se, portanto, tirar o negrume das notas musicais e apreender todas as partituras, de Bach a Villa-Lobos, por exemplo, porque todas contêm notas pretas de menor valor que as notas brancas.
Mande-se suprimir nos livros de Física a expressão “buraco negro”, e de todos os dicionários expressões como “magia negra”, “humor negro”, “ver as coisas pretas”, todas com conotações altamente ofensivas à raça que tanto fez pelo progresso de nossa Terra.
Aliás, por que não mandar recolher todas as gramáticas da língua que ensinam que a concordância nominal se faz no masculino, mesmo que haja um único homem entre milhões de mulheres? Trata-se de uma agressão às mulheres não prevista na Lei Maria da Penha.
Como vê, Sr. Procurador, sua tarefa é extremamente árdua. Haveria outras coisas a dizer, como o preconceito contra a raça branca, encontradiço também nos dicionários, pois passar a noite em claro, dar um branco (quando se perde momentaneamente a memória), arma branca, casamento branco, elefante branco, greve branca, intervenção branca, versos brancos, escravatura branca, viúva branca, ditadura branca, e outras mais, são expressões que devem ser abolidas por sua conotação pejorativa, nitidamente racista.
Se de todo for impossível acabar de vez com os dicionários e livros científicos, cuja função é exatamente a de informar e ensinar sem preconceitos, só lhe resta uma solução, dada a dificuldade de cumprir a missão de salvar a língua portuguesa e a cultura brasileira dos preconceitos e afrontas à Lei Maior: desista dessa ação.
Um abraço fraterno do José Augusto Carvalho
*Mestre em Linguística pela Unicamp e Doutor em Letras pela USP