Um espectro ronda o debate internacional – o espectro da orelhada de “O Capital no século 21″, de Thomas Piketty. Toda essa repercussão ergue monumento incidental a outro francês: Pierre Bayard e seu “Como falar dos livros que não lemos”.
Não há registro em tempos recentes de tamanha muleta para antipatizantes do capitalismo. A imensa maioria nem sequer abriu o volume escrito por Piketty, mas já lhe garante irrefletida adesão. Refestelam-se na certeza de que os céus abençoaram-nos com o novo Alcorão econômico.
Para seus entusiastas nos países em desenvolvimento, as conclusões de Piketty não apenas denunciam a desigualdade no âmbito interno de cada nação, mas convidam também a explicar as diferenças Norte-Sul, repensar o imperialismo e advogar nova teoria da dependência.
Com essa convicção, a de que Piketty propõe um “estado social” para o nosso tempo, tecnocratas saíram levitando de encontro com ele semanas atrás na ONU, em Nova York. E a ideia de impostos progressivos globais – a serem administrados por instituições multilaterais – soa como música aos ouvidos da burocracia onusiana.
Nesses últimos meses, oportunistas na Venezuela, na África do Sul e no Brasil – aqui a própria presidente Dilma Rousseff – já se encostaram em Piketty para legitimar, em meio a taxas de crescimento decepcionantes, suposto foco em políticas de diminuição de desigualdade.
A questão é que “O Capital no século 21″ não trata de alívio da pobreza
A questão é que “O Capital no século 21″ não trata de alívio da pobreza. Tampouco concentra-se em estratégia de crescimento, teoria do desenvolvimento ou modernização institucional. É essencialmente uma pesquisa sobre como parte dos EUA e Europa tende, ao longo do tempo, a remunerar patrimônio e salários de altos executivos em proporção superior ao próprio crescimento da economia.
E, mesmo nesse quesito, não relaciona o fenômeno ao fato de que, por falta de capacidade ou vontade, parcela crescente da população dos EUA abriu mão de empreender ou procurar trabalho para viver ao amparo da assistência social. Nada diz sobre a ausência de inovações verdadeiramente importantes em escala global originando-se na Europa nas últimas décadas.
Por isso, graças ao – às vezes lento – processo de sedimentação de percepções, já se iniciou um processo de “despikettyzação” da discussão econômica.
Isto é bom para o autor – honesto ao reconhecer limitações no trabalho e salientar que pretende sobretudo incentivar conversa serena sobre desigualdade. E ótimo para o debate no Brasil, que carece de um modelo de desenvolvimento.
Para decepção de muitos, Piketty afirmou à “New Republic” desdenhar da obra de Marx, que “não é construída sobre dados”. À “Veja” declarou: “acredito no capitalismo, no livre mercado e na propriedade privada”. Disse ainda: “a países emergentes, como o Brasil, o crescimento é a chave do desenvolvimento e da melhora da qualidade de vida”.
O principal resultado da despikettyzação será muita gente perdendo o muro de arrimo que pensava haver encontrado.
Fonte: Folha de S. Paulo, 13/6/2014