A viagem da presidente Dilma Rousseff a Cuba expressou não apenas limites da diplomacia brasileira quanto à defesa dos direitos humanos, mas também a contraditória relação que parte importante da esquerda - em grande medida representada pelo PT - tem com o tema quando ele se coloca em países ditos socialistas, Cuba em particular. Pode-se até entender, embora seja difícil justificar, a "prudente cautela" diplomática do Brasil no trato das "questões internas" de Cuba. Sob esse aspecto, a presidente Dilma segue uma linha que vem desde o retorno do Brasil à democracia e o restabelecimento das nossas relações com aquele país.
Mais difícil é aceitar o silêncio da maior parte da esquerda brasileira, muito especialmente de intelectuais, artistas e escritores, acerca da violação de direitos pelos quais muitos deles se bateram aqui, no Brasil. Se o governo está limitado por considerações diplomáticas - até que ponto é legítimo manifestar-se sobre a política interna de outro país, até que ponto é contraproducente fazê-lo? -, o silêncio de pessoas cuja atividade está vitalmente ligada à liberdade de pensamento e expressão só se explica por uma espécie de dupla moral que os faz aceitar lá o que condenaram aqui.
No passado, isso se fez em nome da revolução socialista. O argumento apoiava-se na inegável redução das desigualdades sociais nos primeiros dez anos do regime de Fidel Castro e da política obtusa e agressiva dos Estados Unidos em relação a Cuba. Eram outros tempos, haverá quem diga. Mas houve quem enxergasse as feições reais do regime cubano ainda em meio à névoa ideológica da guerra fria. E percebesse que a maior igualdade tinha como preço nenhuma liberdade.
Em 1971 se deu o primeiro rompimento público da intelectualidade de esquerda com o regime da revolução. Nesse ano se prendeu o poeta Heberto Padilla. Submetido a tortura, Padilla foi forçado a se retratar publicamente, no pior estilo das autocríticas forjadas pelos regimes totalitários. Na época Fidel sentenciou: "El arte es una arma de la revolución". Em repúdio, Octavio Paz, Julio Cortázar, Mario Vargas Llosa, para citar apenas os escritores latino-americanos mais conhecidos, assinaram um manifesto denunciado a ação do governo cubano.
Ao longo dos 40 anos seguintes as arbitrariedades do regime se acumularam e o silêncio dos intelectuais brasileiros de esquerda se manteve eloquente, exceções à parte. O que se ouvia, isso sim, eram elogios ao regime e bajulações ao "comandante" (Fidel Castro). Em março de 2003 a ditadura cubana mandou prender 79 pessoas por delito de opinião, condenando algumas delas a quase 30 anos de cadeia. A "Primavera Negra" foi a gota d'água para o escritor português, prêmio Nobel de Literatura, José Saramago, comunista da velha guarda. Em artigo no jornal El País, ele escreveu que a partir dali não poderia mais seguir viagem ao lado de Cuba. A vasta maioria da esquerda brasileira e de seus principais intelectuais continuou no mesmo barco.
Hoje Raúl Castro busca "atualizar" o socialismo em Cuba. O eufemismo enganoso representa o reconhecimento da falência do modelo implantado pela revolução. Esse jamais se mostrou capaz de andar com os próprios pés. Passado o período das expropriações e de mobilização patriótica dos trabalhadores, a economia cubana viveu à base da injeção de recursos externos oferecidos por motivos geopolíticos. Primeiro, pela União Soviética; depois, em menor grau, pela Venezuela de Hugo Chávez.
A verdade é que a economia cubana nunca conseguiu diversificar-se muito além da cana-de-açúcar e atingir níveis mínimos de eficiência. Com isso, depois do colapso da União Soviética, o socialismo cubano se converteu na repartição mais ou menos igualitária da pobreza para a maioria e na distribuição de privilégios para poucos, encastelados no partido e no Estado ou bem conectados a esses dois entes, que lá se confundem em um só.
A "atualização" do modelo é uma tentativa gradual de introduzir reformas que deem algum dinamismo à moribunda economia do país sem que essa mudança acarrete real alternância no poder. Para tanto as reformas não podem ir muito além do estímulo à criação de mercados de compra e venda de imóveis e veículos e da permissão para o funcionamento autônomo de pequenos serviços. Não se quer criar um setor privado que venha a pôr em xeque o controle estatal sobre os setores e atividades principais da economia. Muito menos iniciar a transição para um regime no qual o Partido Comunista de Cuba (PCC) não detenha mais o monopólio da representação política. Mesmo a renovação de lideranças dentro do partido, uma imposição do tempo, não pode implicar riscos para os que hoje mandam. Raúl Castro foi claro a esse respeito na abertura da primeira conferência do PCC, no último fim de semana, quando fez defesa veemente do sistema de partido único e avisou que a norma que limita a dez anos a permanência em cargos da alta hierarquia do regime será aplicada paulatinamente.
Com mais de 80 anos, Raúl tem um horizonte pessoal de mais alguns poucos anos de vida ativa. Quando pensa no longo prazo, está preocupado em preservar um esquema de poder assentado fundamentalmente nas Forças Armadas. Hoje se estima que elas controlem a grande maioria das empresas estatais do país. Não se pode esquecer que Raúl Castro foi o ministro das Forças Armadas desde 1959 até 2008, quando assumiu a presidência em substituição a seu irmão Fidel.
Ao optar por apoiar as reformas, abstendo-se de pressionar por maior liberdade em Cuba, o governo brasileiro aumenta as possibilidades de perpetuação desse esquema de poder, ávido por negócios com empresas estatais e privadas estrangeiras que não ponham em xeque seu controle antidemocrático sobre o Estado e seu domínio monopólico sobre a economia. Dilma não agiu apenas dentro dos limites da diplomacia brasileira. Agiu também nos limites do bloco de poder que ela própria representa.