O que diria Tia Zulmira, a engraçada personagem criada por Stanislaw Ponte Preta, pseudônimo do impagável cronista Sérgio Porto, no início dos anos 60, ao enchergar (isso mesmo, com ch) numa dissertação sobre movimentos imigratórios para o Brasil no século 21 uma receita de Miojo e um trecho do hino do Palmeiras? Acharia rasoavel (assim mesmo, com s e sem acento) as notas 560 e 500, de um total de 1.000, obtidas, respectivamente, por um galhofeiro que mostrou como se faz o famoso macarrão instantâneo e por um apaixonado torcedor do Verdão? E que nota daria ao Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, que orienta os corretores da prova a "aproveitar o que for possível", mesmo ante a inserção de textos com evidente intenção de desmoralizar o processo corretivo? O próprio autor da receita confessa que seu intuito era mostrar que "os corretores não leem completamente a redação". A velha senhora da família Ponte Preta enquadraria seguramente os personagens em questão no Festival de Besteiras que Assola o País, sempre muito farto por ocasião do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). E aproveitaria para pinçar mais uma pérola que explica o motivo de tanta asneira no famigerado concurso: "O nervo ótico transmite ideias luminosas ao cérebro".
Todos os anos o Enem produz extensa crônica de besteiras previsíveis. As expressões fosforescentes transmitidas por apreciável parcela dos cérebros que prestam o exame deixam transparecer um estado de hibernação, para não dizer piora, do corpo educacional do País. O Brasil continua a ocupar um vergonhoso 88.º lugar entre 127 no ranking de educação da Unesco. Seis anos atrás tinha melhor posição(72.ª). Há 6 milhões de alunos no ensino superior, mas 38% não dominam habilidades básicas de leitura e escrita. Ou seja, de cada dez alunos, quatro são analfabetos funcionais, como atesta pesquisa do Instituto Paulo Montenegro e da ONG Ação Educativa entre 2001 e 2012.
A considerar o denso programa de avaliações em todos os níveis de ensino e as campanhas que fazem loas à nossa educação, deveríamos ser um território livre de todas as categorias do analfabetismo. Se o número de analfabetos diminuiu nos últimos três anos, o porcentual de analfabetos funcionais - que sabem escrever o nome, leem e escrevem frases simples, mas são incapazes de usar a leitura e a escrita no dia a dia - tem permanecido o mesmo. Os dados continuam desanimadores. Cerca de 75% das pessoas entre 15 e 64 anos não conseguem ler, escrever e calcular plenamente; destes, 68% são analfabetos funcionais e 7%, considerados analfabetos absolutos - sem habilidade de leitura ou escrita. O IBGE calcula haver cerca de 30 milhões de analfabetos funcionais, a maioria vivendo nas Regiões Norte e Nordeste, onde 25,3% e 30,9% habitam, respectivamente, esse compartimento.
O que mais impacta, porém, na análise da moldura social é o contraste entre o avanço de uns setores e o atraso de outros. Veja-se a situação de renda das margens, que tem aumentado a ponto de se trombetear, todo o tempo, a inserção de 30 milhões de brasileiros na classe C e a "salvação" de outros tantos que saíram da miséria absoluta. Se a desigualdade diminuiu, não seria lógico imaginar, em sua cola, a melhoria de padrões educacionais? Há muitos pontos obscuros no discurso que trata da educação. Não é um paradoxo constatar que quase 80% dos brasileiros são usuários da internet e quase 70% possuem celular, mas o Brasil, com 401 pontos, está numa das últimas posições do Programa Internacional de Avaliação de Alunos(Pisa), atrás de países como Trinidad e Tobago, Bulgária, México e Turquia? Lembre-se que esse programa avalia sistemas educacionais de 65 países, examinando o desempenho de estudantes na faixa etária dos 15 anos.
O que trava o sistema, quando todas as áreas do ensino estão suficientemente diagnosticadas? Na educação básica há uma provinha, a Prova Brasil, e o Enem. No ensino superior, o Enade, aliado ao Censo Escolar, a par de avaliações feitas por comissões de avaliadores. Na pós-graduação, nada funciona sem o endosso da Capes, que autoriza e reconhece os cursos. Faltam mais recursos? Os programas de formação de professores são precários e insuficientes? Como equacionar o imenso buraco causado pela expansão da evasão escolar?
As respostas não são fáceis. Enquanto os ciclos governamentais cultuam a si mesmos tecendo loas ao sucesso de suas políticas, o fato é que o edifício educacional apresenta rachaduras em todos os andares. Pior é ver a avalanche que sobe ao último piso. São milhares de estudantes que entram em cursos inapropriados, outros tantos que buscam um segundo diploma e mais uma leva que interrompe a trajetória no meio. A matriz profissionalizante acaba influenciando as decisões do alunado, prejudicando a formação global, humanística, generalista, imprescindível para a integração num mundo em constante evolução.
Da competição desvairada por vagas em escolas de baixa qualidade não é de surpreender o besteirol que sai desses polêmicos exames de avaliação. A razão das enchentes que assolam a Região Serrana do Rio? Eis a resposta: "É o Euninho. Que provoca secas e enchentes calamitosas". O que se entende por arte funerária? "A arte que egípcios antigos desenvolveram para que os mortos pudessem viver melhor." O que é ateísmo? "É uma religião anônima." E fé? "Uma graça através da qual podemos ver o que não vemos." Agora, o conceito de respiração anaeróbica é mesmo de tirar o fôlego: "É a respiração sem ar que não deve passar de três minutos". Ao sublinhar tão eloquentes "ideias luminosas", Tia Zulmira garante que a receita do Miojo no mais recente Enem trousse, sim, elevada contribuição ao verbo destes tempos tresloucados.
* JORNALISTA, PROFESSOR TITULAR DA USP, É CONSULTOR POLÍTICO DE COMUNICAÇÃO