Ciro Flamarion Cardoso. Pesquisador fundamental para a historiografia brasileira e professor inesquecível para seus alunos / Foto: Felipe Varandas
A vocação para o magistério só pode ser despertada naqueles que tiveram grandes mestres. Comigo não foi diferente. Na impossibilidade de homenagear todos, gostaria de fazê-lo através daquele que mais influenciou minha formação acadêmica: Ciro Cardoso.Conheci Ciro no meu primeiro dia de aula na UFF. Não tinha ainda ideia da sua importância no meio acadêmico. Para mim, ele era o professor de História Antiga do Oriente, cujo curso me fascinou por começar com uma introdução à arqueologia e à pré-história. Era também o professor metódico: sua aula iniciava-se pontualmente, com dois tempos de 50 minutos separados por um intervalo de dez. Gostava desse rigor. Demonstrava o respeito dele pelos alunos e por si mesmo.
Também se preocupava em apresentar coisas novas, ampliar nossos horizontes. Foi numa aula de história medieval dada por ele, por exemplo, que conheci "Carmina Burana". Ciro não só levou o disco para ouvirmos, como nos deu a letra e ainda se preocupou em fazer uma nota explicativa, contando a origem dos poemas e sua transformação em uma cantata por Carl Orff.
Ciro, junto com Maria Yedda Linhares, foi responsável por uma das maiores transformações nos paradigmas da historiografia brasileira ao propor, na década de 1970, a análise das sociedades coloniais latino-americanas a partir de suas estruturas internas, e não somente a partir de suas relações externas. Em 1986, quando entrei na universidade, esse debate já estava amadurecido, mas não resolvido.
Para os alunos, a importância do Ciro fazia com que fosse colocado em um pedestal, inacessível. Com a minha turma, no entanto, foi diferente. Ainda no início do primeiro período, nós o convidamos para um bate-papo em um desses botecos que sempre existem em volta das universidades. E ele aceitou! Começou ali, timidamente, uma relação que logo se transformaria em sólida amizade entre dez alunos de graduação e um dos maiores historiadores brasileiros.
Ciro nos recrutou para um grande projeto de estudo da economia fluminense na segunda metade do século XIX. Foi nosso primeiro contato com arquivos e fontes primárias, um prazer único para aqueles que têm a história como vocação. As reuniões eram por vezes transformadas em almoços em sua casa. A comida? Algo sempre exótico.
Com nossa formatura, a equipe dispersou-se. Muitos acabaram por não dar continuidade à pesquisa ou ao magistério. Outros, como eu, seguiram a carreira acadêmica. Ainda hoje minhas pesquisas seguem por trilhas abertas pelos trabalhos do Ciro. Se expressões como "Antigo Regime nos Trópicos" eram impensáveis até pouco tempo atrás, é igualmente verdadeiro que sem seu trabalho elas simplesmente não existiriam. Mas foi sobretudo sua postura intelectual rigorosa e sua austeridade acadêmica que me marcaram. Na convivência com Ciro Cardoso descobri o significado profundo da palavra mestre.
Antonio Carlos Jucá de Sampaio é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de Na encruzilhada do Império: hierarquias sociais e conjunturas econômicas no Rio de Janeiro, 1650-1750 (Arquivo Nacional, 2003).