A politica externa do Brasil e as eleicoes presidenciais - Paulo R. Almeida
Diplomacia e Relações Internacionais

A politica externa do Brasil e as eleicoes presidenciais - Paulo R. Almeida


Não tenho certeza de ter jamais postado o texto que segue abaixo neste blog, ou divulgado por qualquer outra via, a não ser em caráter restrito, para ser lido, por outra pessoa, em debate acadêmico para o qual fui convidado, sem poder comparecer, como indicado na ficha abaixo. Em todo caso, mesmo sem ter qualquer importância para um debate (que seria de toda forma tardio) sobre a política externa, eu o divulgo neste momento.

2171. “A Política Externa e as Eleições Presidenciais no Brasil em 2010”, Shanghai, 12 agosto 2010, 6 p. Texto de comentários para serem lidos por ocasião de um debate acadêmico. Não publicado.


A Política Externa e as Eleições Presidenciais no Brasil em 2010

Paulo Roberto de Almeida
(www.pralmeida.org)
Comentários para um debate acadêmico

Meus comentários, nem é preciso dizer, são absolutamente pessoais e nem de perto ou de longe assimiláveis à política externa oficial, essa em curso atualmente no Brasil; posso até dizer que nunca antes neste país um disclaimer deste tipo, tal como empregado em ocasiões do gênero, foi tão válido quanto este que agora faço, por dever de ofício. Sendo diplomata, meus comentários serão totalmente não diplomáticos. Bem, vamos ao que interessa.

Inicialmente, creio que todos concordarão comigo numa coisa: numa campanha eleitoral tão manifestamente aborrecida como esta de 2010, com debates entre os candidatos presidenciais tão rigorosamente enfadonhos como os que estamos assistindo, com tantas platitudes sendo ditas em torno dos temas habituais de campanha – crescimento, emprego, políticas públicas para isso e para aquilo, mais um ministério no vasto organograma do governo – talvez não seja de surpreender que, pela primeira vez, a política externa seja, de verdade, o único campo que possa diferenciar os dois principais candidatos em liça.
Sim, porque nos temas de política econômica e de políticas sociais, os candidatos vêm se esforçando para serem rigorosamente os continuadores ampliados de tudo o que aí está: Bolsa-Família, bolsas e mimos de diversos tipos para empresários e banqueiros, subsídios e proteção às empresas nacionais, cuidados com a segurança, a saúde e a educação de todos, enfim, o desfile habitual de promessas hipócritas e de compromissos com todos os grupos de interesse para atender a todos os seus desejos e para se engajar em qualquer coisa que a imaginação dos marquetólogos políticos seja capaz de conceber.
Vou deixar de lado a candidata supostamente ecológica e o revolucionário geriátrico porque, a despeito da capacidade de cada um de desviar votos dos dois principais candidatos, pela novidade dos discursos e pela própria necessidade de muitos eleitores de escapar à pasmaceira reinante no campo dos dois grandes, eles não dispõem, manifestamente, de condições para serem considerados a sério, independentemente do fato que levarão, inevitavelmente, a disputa ao segundo turno. A candidata ecológica possui uma plataforma de política externa quase ao estilo do velho Itamaraty, morna, enfadonha, politicamente correta, sem grandes sobressaltos e sem grandes novidades, a não ser a promessa de defesa enfática dos direitos humanos, o que, na atmosfera complacente com ditadores de todo gênero que prevalece atualmente, deve ser saudado como proposta bem-vinda. Quanto ao revolucionário da terceira idade, ele está muito bem para encantar platéias já convencidas, como assembléias da UNE, encontros do Foro Social, reuniões da Via Campesina e coisas do gênero, mas não tem nenhuma importância para o Brasil real e para o mundo como o conhecemos.
Bem, chega de alternativos, vamos ao que interessa.

No campo oficial, o que se promete é mais do mesmo. Que seja; não deve mesmo ser diferente, em se tratando do mesmo grupo político que ocupa o poder desde 2003, e que gostaria de se aboletar nele pelos próximos 25 anos. Como? Ocupando todas as esferas e nichos do aparelho de Estado com seus militantes aguerridos e seus homens de combate, promovendo a validade de suas teses políticas e suas posições diplomáticas, ao estilo do Nosso Guia: “nunca antes neste país...”. De fato, nunca antes neste país a política externa tinha sido empregada de forma tão acintosa para realçar a figura do próprio presidente da República, nunca antes neste país as teses de um partido, na verdade de um grupo do partido, tinham ocupado espaço tão relevante na diplomacia oficial, na agenda do Itamaraty. Também, nunca antes neste país um ministro de Estado de carreira tinha se filiado a um partido. Isso não ocorreu nem na ditadura militar, quando os diplomatas de carreira ocuparam com maior realce a chefia do Itamaraty. Não se diga que políticos ocuparam a chancelaria, pois isto é normal em democracias consolidadas, que pessoas saídas das fileiras congressuais e dos quadros partidários tenham sido e sejam designados para chefiar a chancelaria.
De fato, o que distingue a diplomacia atual é que ela é rigorosamente partidária, portanto com menor importância sendo dada às posições tradicionais do Itamaraty. O que pode mudar então, no caso da eleição da candidata oficial? O estilo claro. Nunca jamais, no futuro deste país, teremos um chefe supremo da diplomacia tão, como direi?, exageradamente exibido, tão pitorescamente presente em todos os cenários abertos à sua participação, quanto o Nosso Guia atual. Nunca jamais teremos alguém com essa inacreditável capacidade de improvisação discursiva, de imaginação vocabular quanto o presidente atual. Nunca mais teremos o inacreditável desaproveitamento dos discursos oficiais, trabalhosamente preparados pelos diplomatas do Itamaraty, nas cerimônias solenes presididas pelo chefe de Estado. Se supõe que a candidata oficial, convertida em presidenta do Brasil, se atenha rigorosamente aos enfadonhos discursos preparados na linha do politicamente correto pelo Itamaraty, inclusive por razões de carências na sintaxe básica e de dificuldades com a gramática.
O estilo, portanto, deve mudar, e muito. E se o estilo é o próprio homem, como diria o conde de Buffon, neste caso a mulher, alguma coisa talvez mude, embora eu esteja propenso a acreditar que pouco mudaria nas linhas básicas da política externa partidária atual. A mesma complacência com os pequenos atentados à união aduaneira do Mercosul, a mesma diplomacia da generosidade em relação aos vizinhos, a mesma disposição a financiar projetos que reduzirão, supostamente, as assimetrias regionais, a mesma leniência com atentados aos direitos humanos por ditadores conhecidos e com as violações aos princípios democráticos por candidatos a caudilhos autoritários, enfim, tudo isso é previsível que ocorra, pois é isso o que JÁ ESTÁ acontecendo hoje, sob os nossos olhos, que custam a crer que o Itamaraty esteja envolvido em tudo isso.
Claro, tem o discurso da importância internacional do Brasil, sua visibilidade nos cenários econômicos e políticos mundiais, a projeção alcançada por sua hiper-ativa diplomacia, a capacidade de ser um líder regional, até mesmo a condição de candidato a potência mundial. Tem também a alegação da defesa da soberania, aquela história sempre repetida de não descalçar sapatos, a coragem de dizer não, a ousadia de ter posições próprias sem pedir permissão aos grandes, as iniciativas de realizar encontros e organizar novas entidades sem tutela e sem a presença do Império. Tudo isso é alegado como marca distintiva da nova diplomacia brasileira, e que promete se prolongar num regime de continuidade. Se isso é verdade, então não há muito mais a acrescentar; basta confirmar que teremos, sim, continuidade das mesmas linhas diplomáticas, o mesmo continuísmo partidário, e tudo está dito, não é preciso acrescentar mais nada sobre as posições da candidata: elas serão as do seu guia e mentor. Ponto.

Restam então as posições, ou promessas, do candidato oposicionista, que pouco disse, até agora, de estruturado, sobre a sua eventual política externa, a não ser frases soltas em discursos. Sabemos, por exemplo, que o Mercosul é uma porcaria, que ele não serve, e que possivelmente os arranjos atuais serão revistos no sentido de dar mais liberdade de política comercial ao Brasil. Sabemos que o candidato não gosta de ditadores e de violadores dos direitos humanos e que ele nunca alinharia o Brasil com alguns dos personagens que aparentemente se converteram em amigos do presidente atual. Sabemos também que ele pretende acabar com o monopólio do Itamaraty na formulação da política comercial e na negociação de acordos nessa área, e que ele pretende, de modo geral, conduzir uma diplomacia mais pragmática, mais consistentemente alinhada com as posições tradicionais do Itamaraty, no lugar da diplomacia ideológica e partidária que hoje ocupa todos os espaços na política exterior do Brasil.
Isso parece ser tudo, mas é na verdade muito pouco, pois não temos ainda plataforma de campanha, como aquelas já apresentadas pela candidata da situação (é verdade que trocadas três vezes). O candidato da oposição fica devendo seus pontos programáticos, de maneira a nos permitir julgar o conteúdo exato de seu pensamento em política externa. Inclusive porque o PSDB não é um partido tão avassaladoramente “ocupacionista” de nichos no Estado como o PT, se supõe que a diplomacia voltará a fluir a partir de seus canais habituais no Itamaraty, havendo inclusive uma grande chance para que a chancelaria venha a ser novamente ocupada por algum diplomata – talvez aposentado e provavelmente apartidário, ainda que simpático aos tucanos – e que a assessoria presidencial venha a ser novamente monopolizada pelos itamaratecas, como habitualmente são chamados os diplomatas profissionais. Quanto ao resto, ou seja, o que mais faria, ou fará, o candidato da oposição, se e quando no comando do Estado, parece ser um tanto misterioso, tanto porque é proverbial sua tendência centralizadora e um tanto concentradora de decisões.

Finalmente, um último comentário sobre a importância disso tudo para o Brasil, em geral, e para a população brasileira em particular. Eu diria, sem querer parecer pessimista ou contrarianista, que muito pouco, quase nada, do que vem sendo discutido em matéria de política externa apresenta importância efetiva para o Brasil ou relevância real para a vida diária dos brasileiros. À parte as questões óbvias de conquista de mercados externos e de concorrência nos mercados internos de bens e serviços – considerando-se também que o Brasil ainda é um país muito fechado – os temas de política externa são praticamente marginais ou periféricos aos grandes problemas do Brasil atualmente.
Nada, ou quase nada do que o Brasil fizer no plano externo tem a capacidade ou a virtude de mudar substancialmente a vida dos brasileiros se a própria sociedade brasileira não se engajar decisivamente num conjunto de reformas em áreas que constituem manifestamente problemas, ou limitadores das possibilidades brasileiras de crescimento, de melhoria das condições de vida, de progressos em suas instituições políticas, de avanços nos planos da educação e da saúde, em resumo, de saltos significativos no bem-estar da população.
Senão vejamos: o Brasil tem hoje um problema macroeconômico de baixa poupança, de baixas taxas de investimento e, portanto, de poucas alavancas para um ritmo mais vigoroso de crescimento. Isso não tem nada a ver com o ambiente externo ou com a diplomacia oficial. Tem a ver com a despoupança estatal, com a imensa capacidade extrativa e extratora do Estado brasileiro, com o fato de que ele gasta muito consigo mesmo e que investe pouco, portanto. Este é um problema brasilo-brasileiro, não um problema de relações internacionais.
O Brasil tem hoje um quadro fiscal em deterioração progressiva, uma previdência tecnicamente falida, uma educação pública de péssima qualidade (e piorando), saúde pública em condições deploráveis, com disseminação de doenças epidêmicas e deterioração dos equipamentos hospitalares, tem uma das piores situações de segurança pública das grandes sociedades urbanizadas, tem uma taxa de corrupção oficial escandalosamente alta, tem instituições governamentais entrópicas, um mandarinato extensivo e auto-centrado, preocupado apenas com seus privilégios nababescos em certos casos. Todos esses problemas são made in Brazil, não tem nada a ver com o ambiente externo.

Em contrapartida, o governo brasileiro atual pratica uma diplomacia da generosidade típica de país rico, como se toda a população brasileira já vivesse em situação confortável, sem qualquer tipo de problema material, para que o Estado possa fazer essas doações de milhões de dólares em favor de governos e populações estrangeiras, numa estratégia que no máximo consegue reproduzir a assistência oficial ao desenvolvimento que os países ricos praticaram nas últimas seis décadas, com os resultados que se conhecem em termos de desenvolvimento (ou não) dos países mais pobres. O Brasil tem uma política de projeção externa que foi mais concebida para dar realce ao seu mandatário de ocasião do que para fazer o país conquistar a tão desejada liderança regional – ainda não aceita, diga-se de passagem – ou convertê-lo em potência verdadeiramente mundial. Nisso a diplomacia foi extremamente bem sucedida, cabe ressaltar, mas acredito que esse estilo de diplomacia se encerra por aqui mesmo, sem capacidade de transferência a seu sucessor, ou sucessora.
O que o embaixador Rubens Ricupero chamou, em trabalho recente, de diplomacia “gaulliste” – do general De Gaulle – é na verdade um arremedo de diplomacia soberanista e defensora do interesse nacional. Não vou me estender sobre isso agora, em vista de tudo o que já escrevi e publiquei a respeito. De toda forma, as paixões desatadas em momentos como este, de campanha eleitoral, se prestam mal a uma avaliação ponderada, isenta, objetiva, do que seja uma diplomacia adequada a um país médio como o Brasil, interessado em primeiro lugar na prosperidade do seu próprio povo, na promoção dos direitos humanos e dos valores democráticos num mundo em transformação. Creio que teremos de aguardar ocasiões mais serenas, oportunidades mais tranqüilas, para um novo debate em torno dessas questões. Muito obrigado.

Paulo Roberto de Almeida
(Shanghai, 12 de agosto de 2010)




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