Exacao fiscal, prevaricacao, males antigos, males atuais - Guardamoria (Paulo Werneck)
Diplomacia e Relações Internacionais

Exacao fiscal, prevaricacao, males antigos, males atuais - Guardamoria (Paulo Werneck)


Parece que nossos males não são nossos, e não são atuais. Parece não, assim é, desde tempos imemoriais, como nos lembra o sempre brilhante pesquisador de coisas antigas (talvez não sabidas) Paulo Werneck, no seu sempre atraente Guardamoria...
Grato Paulo...
Paulo Roberto de Almeida

Guardamoria



Prevaricação ou Excesso de Exação?
Guardamoria, 16 Mar 2014 03:22 PM PDT
Paulo Werneck

Um fiscal aduaneiro, enquanto autoridade estatal, é a voz do Estado. Em tempos idos era a voz do próprio Rei. Tempos idos por aqui, pois no Reino Unido, por exemplo, continua o sendo. Assim o público tem que o obedecer, mas esse poder oferece a oportunidade de que seja mal usado, ou mesmo usado em benefício da autoridade, ultrapassando o que dela era esperado.

Modernamente isso é denominado excesso de exação, está previsto no artigo 316 do Código Penal Brasileiro, e é considerado crime do funcionário contra a administração pública, caracterizado por uma cobrança que o servidor sabe ou deveria saber que é indevida, ou fazer a cobrança de modo humilhante, socialmente inadequada ou abusiva.

O contrário, também ilegal, é a prevaricação, retardardar ou deixar de praticar o ato devido, previsto no artigo  seguinte do mesmo código, ou seja, o 319.

Esses crimes não são novos e em 1211 a administração de Afonso II, terceiro rei de Portugal,  se preocupa de coibir a prevaricação, como relata João Pedro Ribeiro. 
Reinado do Senhor D. Affonso II
Era 1229 (An. 1211)
.....
22.ª Que fossem castigados os Officiaes da Fazenda que prevaricassem nos seus officios.
L. A. Ibid. in fine F. A. S. f. 26. v. A. Liv. 2. tit. 42.
.....
onde "L. A." era abreviação "Codice de Leis Antigas no R. Archivo, ou L.º A. da Camara do Porto", "F. A. S." abreviação de Foral Antigo de Santarem no R. Archivo, impresso no Tomo 4. dos Ineditos da Academia, Tomo 4, pag. 531" e "A." era abreviação de "Ordenação Alfonsina".

O Título 42 trata dos tesoureiros, almoxarifes, e outros Oficiais d'ElRey, que lhe furtam, ou enganosamente malbaratam o que por causa dele receberam, com base numa lei de Afonso III (outro rei), muito mais geral e com castigos corporais: nada ou pouco a ver. 
Todavia essa norma pode ser encontrada de forma mais extensa no Livro das Leis e Posturas compilado no governo de Dom Duarte, mas, na ementa parece que é o oposto que é punido, o excesso de exação, cobrar mais do que foi mandado. 
Estas som as leys e as posturas que fez o muy nobre Rey Dom afonsso de Portugal e mandou aos Reys que ueesem depos el que as guardassem.
.....
Constituição XXII
Stabeleçjmento do porteyro delRey em como nom deue fazer eyxecuçom mays do que lhi he mandado

Se nosso porteyro quer com fuste. quer com letras ou per sy for fazer eyxacuçom contra alguem sse aquel ssobre que faz a eyxacuçom for ia Julgado em nossa corte sobre esto nom Reçeba nenhũa cauçom. Mais de todo em todo faça a eyxacuçom se mais nom fezer ca em na nossa sentença he mandado ¶ E se aquelo sobre que fez a exacuçom nom for primeiramente en nosa corte Julgado. ou que nom foy de nenhũu Julgado se este contra que fezerem a eyxacuçom o porteyro quer dar bõa cauçom ou penhores dante dous ou tres homeens boons pera estar a nosso Jujzo. E o porteyro nom o quer Reçeber mais quer o penhorar. Esto seia testemunhado dante dous homeens boons. e entom tolha lhi per força a penhora sem coomha nenhũa ¶ E sse cauçom nom quiser dar a nenhũa guisa nom tolha a penhora. e sse a tolher seia peado em quinhentos. soldos.
Há que se atentar para a grafia: i pode significar j e vice versa, e para algumas palavras, como porteyro, fuste, letras, eyxacuçom, cauçom, coomha, peado, soldo.

Cauçom basta atualizar para caução, eyxacuçom para execução 

O porteyro seria o oficial da Fazenda, atual fiscal de tributos, considerando a atualização do texto levada a cabo por Ribeiro. Segundo Bluteau, haviam diversas modalidades de porteiros, inclusive aqueles que podiam fazer penhora e execução. 

Segundo Viterbo, fuste seria um sinal que o juiz daria ao porteiro para que este pudesse ser reconhecido como representante do magistrado e com isso citar o devedor, de modo semelhante ao que usa hoje o oficial de justiça.

Coomnha seria o mesmo que calumpnia e calumnia, significando acusação falsa, mas também multa (Viterbo).  


Peado significava condenado a uma pena (Viterbo), no caso, em quinhentos soldos.

Soldo era o nome de uma moeda, derivada de outra romana, dita solidus, porquanto sólida, confiável (Viterbo).

Quanto ao valor, sabemos de D. Afonso III estabeleceu, pela Carta de Lei de 7 de janeiro de 1253, que doze dinheiros faziam um soldo e vinte soldos perfaziam uma libra, moeda de conta, isto é, sem existência real, como recentemente as nossas URVs. Quanto valiam os quinhentos soldos ou 25 libras no bolso do porteiro desonesto é deixado para que o leitor pesquise...

Da norma depreende-se que se o oficial da fazenda por qualquer modo - procurador, carta ou em pessoa - fizer a execução ou cobrança de algo ao particular, se este já houver sido condenado, não pode receber caução, caso contrário pode receber a caução ou fiança, mas se o particular não apresentar garantia, deve efetuar a penhora, e se não a efetuar, é punido, por deixar de praticar o ato, ou seja, por prevaricar.

Fontes:

BLUTEAU, Rafael. Vocabulario Portuguez e Latino. 8 volumes e dois suplementos. Lisboa: diversos impressores, 1712 a 1727 (dependendo do volume).


FERNANDES, Manuel Bernardo Lopes. Memória das Moedas Correntes em Portugal desde o tempo dos romanos até o anno de 1856. Lisboa: Typographia da Academia, 1856.

PORTUGAL. Livro das Leis e Posturas. Leitura paleográfica de Maria Teresa Campos Rodrigues. Pag. 12. Lisboa: Universidade de Lisboa. Faculdade de Direito, 1971.

RIBEIRO, João Pedro Ribeiro. Additamentos e Retoques á Synopse Chronologica. Pag. 3. Lisboa: Academia Real das Sciencias de Lisboa, 1829.

VITERBO, Fr. Joaquim de Santa Rosa de. Elucidário das Palavras, Termos e Frase Antiquadas da Língua Portuguesa. Lisboa: A. J. Fernandes Lopes, 1867.



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