Diplomacia brasileira: o grande retrocesso - Matias Spektor (Epoca)
Diplomacia e Relações Internacionais

Diplomacia brasileira: o grande retrocesso - Matias Spektor (Epoca)


Matias Spektor: "É um tapa na cara do Brasil"

Para o analista, a escalada autoritária do chavismo na Venezuela ameaça o projeto de integração na América do Sul. E o governo brasileiro silencia perigosamente

LEANDRO LOYOLA
Revista Época, 14/03/2014 21h05

Desde o ano passado, Matias Spektor trocou a vida de professor de relações internacionais da Fundação Getulio Vargas, no Rio de Janeiro, pela labuta de escritor numa casinha em Hampstead, Londres. Spektor aproveitou a cátedra Rio Branco, que ocupa no King’s College, para se afastar da rotina e terminar 18 dias:  quando Lula e FHC se uniram para conquistar o apoio de George W. Bush, seu terceiro livro, previsto para julho. Nele, Matias conta como Lula e FHCtrabalharam juntos em 2002 para debelar uma das mais graves crises internacionais que o Brasil enfrentou. “Os republicanos achavam que Lula criaria um Eixo do Mal na América Latina”, diz. “Conto como Fernando Henrique e Lula fizeram uma operação exitosa – Bush não só abriu as portas da Casa Branca, como aproximou o PT dos Estados Unidos.” Para fazer o livro, Spektor pesquisou documentos secretos e entrevistou os dois ex-presidentes brasileiros, além da ex-secretária de Estado Condoleeza Rice. Na semana passada, ele deixou a história de lado para falar com ÉPOCA sobre a política externa brasileira.
ÉPOCA – É um pouco difícil lembrar que Lula e Fernando Henrique trabalharam juntos em 2002.
Matias Spektor –
 Isso é uma das coisas que a gente precisa recuperar da história. É um período em que havia uma crise real de política externa, de imagem externa do Brasil, que precisava ser resolvida. A maneira de resolvê-la foi pegar as duas forças políticas do Brasil e uni-las – e, quando eles trabalham juntos, ninguém segura. Parte do problema de nossa política externa hoje é que a polarização (PT-PSDB) é tão intensa que o Brasil não tem capacidade de barganha – como no caso da Venezuela.
ÉPOCA – Por que o senhor afirma que o Brasil não tem capacidade de barganha na crise na Venezuela?
Spektor –
 Num ano em que o grande drama nacional é a eleição de outubro, a Venezuela virou tema de política eleitoral no Brasil. Nos últimos dias houve artigos do Fernando Henrique e do (senador) Aécio (Neves, pré-candidato ao PSDB à Presidência) criticando frontalmente a política da (presidente) Dilma (Rousseff) para a Venezuela. Da mesma maneira, o PT pretende enviar o (presidente do partido) Rui Falcão a Caracas. Isso significa que o tema está partidarizado. O impacto disso sobre a política externa é engessar o Palácio do Planalto. Dilma está numa sinuca de bico. Se quiser dar uma dura em (Nicolás) Maduro (presidente da Venezuela), isso será visto dentro do embate político partidário como um recuo do governo. É uma situação péssima, porque a lógica de nossa política regional sempre deve ser ter o maior número de opções à mesa. Lula escapou disso. Fernando Henrique também escapou. Quando houve a tentativa de golpe contra Chávez em 2002, Fernando Henrique saiu em defesa de Chávez e mandou petroleiros para quebrar a greve da PDVSA contra ele.
>> Tolerância com o atraso venezuelano
ÉPOCA – Como o governo Dilma ficou nessa situação?
Spektor –
 Desde o início se colocou com uma das partes do conflito, e fez vista grossa para os abusos que o chavismo vem cometendo. O Brasil perdeu espaço de manobra. Você só tem espaço de manobra se é visto por todas as partes em disputa como interlocutor legítimo. Dilma mandou Marco Aurélio (Garcia, assessor da Presidência) a Caracas e Rui Falcão vai a Caracas. Na semana passada, o Itamaraty recebeu a visita de Elías Jaua, o chanceler venezuelano. Em nenhuma dessas instâncias uma autoridade brasileira se encontrou com uma liderança de oposição venezuelana. Compare com o Lula: antes de assumir, ele mandou Marco Aurélio a Caracas. Ele encontrou primeiro Chávez, depois a oposição. Era para aumentar o leque de opções de Lula.
ÉPOCA – Até agora, o Brasil se calou sobre a Venezuela. Apenas assinou um comunicado do Mercosul, redigido pela própria Venezuela. Foi um erro?
Spektor –
 Sem dúvida. Penso em três motivos. O primeiro é que o chavismo está testando seus limites – e tem ficado cada vez mais autocrático e autoritário. Uma escalada autoritária em nossa vizinhança é um tapa na cara do projeto brasileiro de integração regional. O segundo motivo: ou o chavismo faz reformas no modelo de gestão da economia, ou a economia vai para o brejo – e, se a economia for para o brejo, os interesses econômicos brasileiros sofrerão e botarão pressão no Planalto. O terceiro motivo – e desse quase ninguém fala no Brasil, mas para mim é dos mais importantes: a cada dia o chavismo parece menos uma alternativa de esquerda democrática. Os ganhos que o chavismo trouxe para os venezuelanos mais pobres estão ameaçados pela desordem da economia e desse modelo político cada vez mais autoritário. A gente tem visto repressão até em bairros pobres na Venezuela, (com) milícias mandadas pelo próprio presidente. Apesar de ser a chefe de Estado mais poderosa da América do Sul, Dilma se nega a emitir uma mensagem ao chavismo sobre aquilo que é tolerável. Pelo contrário: a diplomacia brasileira tem dado apoio a um governo que já perdeu os próprios limites. Não dizer nada é uma irresponsabilidade. Não existe uma percepção clara de que o desfecho da crise venezuelana definirá o futuro do projeto brasileiro de integração. Essa é a maior crise internacional que o Brasil enfrenta nos últimos anos.
ÉPOCA – Por que o Brasil trabalhou contra o envio de uma missão da OEA à Venezuela?
Spektor –
 Existe uma percepção de que a OEA (Organização dos Estados Americanos) é um organismo dominado pelos Estados Unidos e também a percepção de que os Estados Unidos têm interesse na derrubada do governo democraticamente eleito de Maduro. É possível pensar no argumento contrário. Foi o que Lula fez na última grave crise do chavismo, em 2003. Em abril de 2002, houve uma tentativa de golpe contra Chávez com apoio americano, e a maneira que Lula achou de ajudar a tirar o país da crise foi trazer os Estados Unidos para a mesa.
ÉPOCA – Como está a relação do Brasil com os Estados Unidos hoje?
Spektor –
 A relação viveu um pico muito positivo nos governos Lula e Bush. De lá para cá, degringolou para nunca mais decolar, apesar de tentativas sinceras. Tanto Dilma quanto Obama tentaram desde o início fazer a relação dar certo. Isso não foi possível. O escândalo de espionagem (as acusações contra a agência americana NSA de espinonar a presidente Dilma Rousseff) eliminou as condições para que houvesse uma restauração do relacionamento. Não há nenhuma condição política de isso acontecer antes das eleições de outubro. O desafio, no entanto, me parece claro: a relação com Washington é importante porque afeta em cheio a capacidade de o governo brasileiro fazer política pública em casa. Lula entendia isso perfeitamente, Fernando Henrique entendia isso perfeitamente. A gente precisará restaurar esse relacionamento, principalmente num sistema econômico internacional que ficou mais duro e difícil para o Brasil. Nossa assimetria de poder com os Estados Unidos é enorme – eles são muito mais poderosos que nós. Quem perde ao não falar somos nós. Precisamos encontrar uma fórmula de convivência.
ÉPOCA – Os governos Lula e Dilma expandiram a presença brasileira na África e investiram quase US$ 1 bilhão na construção do Porto de Mariel, emCuba. O Brasil terá vantagens nisso?
Spektor –
 O Brasil se beneficiou enormemente do investimento na África. Agora, essa abertura foi feita sem sustentabilidade. Temos embaixadas vazias, que só existem no papel, nossa política de cooperação para o desenvolvimento é desastrada. Em relação ao Porto de Mariel, é claro que interessa ao Brasil estar em Mariel! O Porto de Mariel em pouco tempo virará um polo importantíssimo das Américas. Facilita a entrada no maior mercado do mundo, o americano e, do ponto de vista político, ajuda Cuba a fazer uma transição entre o regime castrista e o que virá depois, driblando o embargo americano.
ÉPOCA – Há dez anos o Brasil lidera uma força militar das Nações Unidas no Haiti, é reconhecido como uma potência econômica, mas tem pouca presença na política internacional. O Brasil demonstra interesse em ser um grande jogador na geopolítica?
Spektor –
 Para um país com pretensões a uma cadeira permanente (no Conselho de Segurança da ONU), o Brasil é um país muito pouco ativo. Isso é reflexo de algo importantíssimo na política externa brasileira: a aversão ao risco. Uma marca registrada de Lula e Celso Amorim era a disposição em assumir riscos. Isso é muito raro na história do Brasil. Lula teve uma posição doméstica de muita força para fazer política externa. Dilma não tem um ambiente internacional favorável para isso. A ideia do Brasil como potência emergente saiu do comentário internacional. Estamos voltando ao nosso hábitat natural, a política externa avessa ao risco.



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